Folha de S. Paulo


Ana Paula Maia produz literatura violenta dentro de universo masculino

Daniel Marenco/Folhapress
Retrato da escritora Ana Paula Maia em livraria de Botafogo, no Rio de Janeiro

RESUMO A carioca Ana Paula Maia faz sucesso internacional com histórias violentas e predominantemente masculinas, na contracorrente da literatura brasileira de exportação, marcada pelo exotismo. Dispensando o psicologismo típico da produção literária recente, sua obra se aproxima da literatura de imaginação e vanguarda.

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Ana Paula Maia configura um caso raro da cena literária contemporânea. Nascida em 1977 no subúrbio do Rio de Janeiro, negra, ex-evangélica, ex-punk rocker, a escritora soube eleger temas e ambientações de suas histórias com consciência estética que a coloca em patamar distinto de seus companheiros de geração, ao menos daqueles praticantes da hegemônica "literatura do eu".

À primeira lida, clama por atenção em seus livros a ausência de psicologismo. Além disso, ao não situar sua ficção na urbe, a autora escapa de uma outra característica predominante da literatura das últimas décadas. Maia opta por ambientes institucionais ocupados apenas por homens —minas, açougues e matadouros, penitenciárias e ambientes rurais—, que não parecem estar no Brasil.

Esses deslocamentos afastam-na da ubíqua influência urbanoide e psicopatológica de Rubem Fonseca, por exemplo. Também ao contrário deste, sua obra costuma apresentar certa intenção moralizante, ao advertir sobre possíveis catástrofes futuras, aproximando-se da ficção científica mais distópica.

Com isso, os romances de Maia têm despertado entusiasmo internacional.

Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos
Ana Paula Maia
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Sua "trilogia da brutalidade" (composta por "Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos", "O Trabalho Sujo dos Outros" e "Carvão Animal") foi reunida num volume pela rigorosa editora Dalkey Archive Press (EUA), a obra "A Guerra dos Bastardos" recebeu prêmio na Alemanha e seus livros começam a ser publicados na Espanha pela Siruela, selo que deflagrou a crescente difusão de Clarice Lispector pelo planeta.

Em resenha à edição argentina do sexto romance da autora, "Assim na Terra como Embaixo da Terra" (lançado ao mesmo tempo pela Record no Brasil e pela Eterna Cadencia na Argentina), Beatriz Sarlo afirma que, "aos amantes de cor local, estes dois romances [refere-se a "De Gados e Homens"] podem lhes confirmar que o 'brasileiro rural' se expressa com violência arcaica", para logo em seguida reavaliar: "Contudo, esta leitura seria superficial. Os romances de Maia não são imposições de um destino identitário, mas de escolha estética".

EXPORTAÇÃO

Como sugere o cuidado despendido por Sarlo desde Buenos Aires, Maia tem sido alvo de singular interesse por parte de leitores hispano-americanos.

Diferentemente, porém, de outras situações exitosas de autores brasileiros para exportação, quando a curiosidade estrangeira se pautava pelo exotismo tropical (com muito coqueiro e sensualidade morena feminina na embalagem), o que se vê no caso de Maia é uma atração pela fúria intrigante emanada de livros tão masculinos.

"Talvez haja uma leitura um pouco exótica dos estrangeiros, que procuram nela o brasileiro enigmático, idealizado, simbólico", assevera o escritor e professor Roberto Taddei.

"Mas é curioso pensar que o romance não faz referência ao Brasil. Aquela colônia [onde se passa 'Assim na Terra...'] poderia estar em qualquer lugar do mundo. Nesse sentido, o olhar estrangeiro, ao ver o 'brasileiro', é um olhar colonizador."

De fato, entre os méritos de Maia está algo difícil de obter: a criação de um universo particular e reconhecível, de personagens recorrentes como Edgar Wilson, Bronco Gil e Milo, com o adendo de ser um mundo hiperestilizado, como esses próprios nomes indicam.

Não é o Brasil, mas talvez seja o Brasil que estrangeiros queiram ver, ou então o país que conseguem ver, em nosso embrutecido estado de coisas. Talvez um mundo hiper-hostil que vem substituir a feliz nação bananeira no imaginário mundial?

Na colônia penal de "Assim na Terra", a única política é a do extermínio: pauladas, tiros, facadas e decapitações executadas por matadores condenados, homens que nada têm a perder pois já se creem mortos.

A argentina Selva Almada, 44 ("O Vento que Arrasa", Cosac Naify, 2015), afirma ter sido profundamente impactada ao ler "De Gados e Homens": "O realismo descarnado que de repente é atravessado por um evento estranho, inexplicável, mais da ordem do fantástico, me pareceu um romance duríssimo, com personagens tremendos e um universo violento e violentado o tempo todo, onde, no entanto, há espaço para Wilson ter piedade".

A dureza da linguagem de Maia amplifica a rudeza de seus personagens com um estilo que não é, em primeira instância, literário.

Taddei, que resenhou "Assim na Terra" para a Folha, diagnostica a tendência da escritora a finalizar narrativas com apelos estruturais típicos do cinema: "Acho que o livro promete uma coisa no início, um diálogo de perto com a ideia de indivíduos sem passado, em uma terra sem história, de indivíduos desenraizados pelo poder do capital, expostos a um ambiente colonizado, mas depois muda o jogo".

Portanto, para ele, a promessa não se confirma: "O livro se apropria da condição kafkiana [partindo de "A Colônia Penal", do autor checo] e constrói-se a partir da tradição de investigação da tragédia humana do século 20, para acabar como filme hollywoodiano de superação pessoal, de meritocracia, como 'Fuga de Alcatraz' [filme de 1979 dirigido por Don Siegel e estrelado por Clint Eastwood]".

SEM PSICOLOGIA

A ausência de arcabouço psicológico resulta em uma ficção que não depende da presença da autobiografia da autora, num movimento que parece aproximá-la dos procedimentos da literatura de imaginação e de vanguarda —em sua resenha, Sarlo fala em literatura experimental.

Por outro lado, a sintaxe contida de Maia permite inseri-la na tendência contemporânea que o escritor argentino Marcelo Cohen designou em ensaio recente como infraliteratura ou literatura ruim.

Essa categoria crítica operaria em complemento à hiperliteratura, rebuscada e digressiva, funcionando ambas como alternativa à literatura comercial, entendida pelo ensaísta como "a prosa do Estado", que conta as versões prevalecentes de um país, "inclusive os sonhos, as memórias e as fantasias".

Segundo essa lógica, a ficção de Maia explora estilisticamente a pobreza de recursos, assim como a tematiza em seus enredos.

O enfoque pesadelesco dos livros da escritora carioca mostra o outro lado da moeda do capitalismo, oposto ao beletrismo e à correção política da prosa comercial, com estilo antiartístico e à base de estereótipos narrativos e clichês.

Em seu caso, porém, não parece haver unanimidade sobre o êxito da empreitada em "arrebentar a prosa de Estado", como predica Cohen, a ponto de recriar a literatura e "elaborar uma arte da palavra da qual só se sabe que talvez deva ter outro nome", como defende o escritor.

Entre os que duvidam do resultado está Luís Augusto Fischer, professor da UFRGS, que fez dura crítica a "De Gados e Homens" (publicada pela Folha): "O livro tem muitos defeitos num nível elementar, tem erros puros e simples, casos de escrita ruim. Num nível mais estrutural, os personagens parecem inconvincentes. Talvez o problema central seja que o romance se propõe uma narrativa realista, não alegórica ou onírica ou psicológica, e não consegue bancar esse realismo".

ADMIRADORES

Assim como a argentina Almada, outros escritores latino-americanos que leram a brasileira não fazem eco às reservas de Taddei ou Fischer.

O romancista boliviano Maximiliano Barrientos, 38, autor de "Hotéis" (Rocco, 2014), considera que ler Ana Paula Maia a partir de uma poética que não é a dela (como faz Taddei com Franz Kafka, por exemplo) é tão restritivo quanto pensar no fato de que ela escreve apenas sobre homens.

"Seria injusto com sua literatura se a lêssemos a partir de um lugar que não é a literatura, pois a estaríamos lendo a partir do gênero, a partir do exotismo que se propõe. Se lemos [William] Faulkner a partir de [Vladimir] Nabokov não sobra nada, e vice-versa", diz Barrientos.

Ao refletir sobre a ferocidade acumulada em "Assim na Terra", Sarlo especula que, se o romance fosse lido sem nome de autor, sob anonimato, "muitos certamente diriam que foi escrito por um homem, não somente porque não aparecem personagens mulheres, mas pela obsessiva precisão de sua violência. É um romance de homens, narrado por uma mulher".

Para Almada, autora que também situa suas narrativas em zonas masculinas como oficinas mecânicas, púlpitos ou áreas de construção civil, a ausência de mulheres nos romances pouco importa.

"Não acho que um livro deve ser lido em chave feminista por ter muitas mulheres ou nenhuma. Nesse sentido a primeira leitura que me interessa fazer tenta recuperar aquilo que me fazia ler quando era menina e que sempre tem a ver com o fascínio que um livro pode me provocar", ela diz.

"Um livro não é feminista só por ter mulheres como protagonistas. Um universo exclusivamente de homens também nos diz algo sobre o assunto, talvez mais complexo."

"Dá muito o que pensar a ausência de mulheres nos livros escritos por uma mulher", afirma Juan Cárdenas, 39, prestigioso autor colombiano ainda inédito no Brasil (seu romance mais recente, "El Diablo de las Provincias", acaba de ser publicado na Espanha pela Periférica).

"Porém, me parece um gesto radical que nos desafia mais pela suposta obrigação que as escritoras têm de falar apenas como mulheres. É algo enigmático, esse modo de submergir num mundo brutal e totalmente masculino", completa o escritor.

Metonímia da violência generalizada de um todo mais amplo, a realidade na qual demandas podem ser satisfeitas instantaneamente através de ficções de todo tipo —desde as redes sociais que esvaziam qualquer resposta à experiência até a política como mero ramo da propaganda—, a obra de Ana Paula Maia vem construindo um pequeno Brasil distorcido que não deixa de reproduzir o grande Brasil, uma gigantesca ficção brutalizante em forma de país.

JOCA REINERS TERRON, 49, escritor, é autor de "Noite Dentro da Noite" (Companhia das Letras).


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