Folha de S. Paulo


Ursula Le Guin aborda a utopia em livro premiado sobre planetas gêmeos

Marian Wood Kolisch/The New York Times
A escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin

RESUMO O próximo encontro do Clube de Leitura Folha, que acontece nesta terça (28) às 19h, vai discutir o livro "Os Despossuídos", de Ursula K. Le Guin. O evento acontece na livraria Martins Fontes da avenida Paulista e tem entrada gratuita. No texto a seguir, a escritora Ana Rüsche faz uma resenha crítica da obra.

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Shevek é um homem magro, alto, ossudo e branco, com cabelos longos, olhos claros, fala reservada. Poderia ser um hippie californiano dos anos 1970. Entretanto, é nativo do planeta Anarres e protagonista de "Os Despossuídos", obra clássica de Ursula K. Le Guin.

Shevek irá atravessar um muro. Uma travessia que ninguém fez antes, embora não haja placas de "passagem proibida". Shevek atravessará o muro, escapando de pedras que lhe atiram em protesto. Silencioso, subirá na nave espacial. Em seu destino, conhecerá seres humanos do planeta Urras. Irá sorrir calmo e perguntar: "Aqui está o seu anarquista. O que farão como ele?".

O livro narra a jornada de Shevek, um homem que desafiará muros. Considerado obra de referência, "Os Despossuídos" foi publicado em 1974, após o premiado "A Mão Esquerda da Escuridão" (1969). Recebeu os maiores prêmios da ficção científica: Hugo, Locus e Nébula.

Escrito no período de distensão da Guerra Fria e durante a Guerra do Vietnã, incorpora a rivalidade entre nações, a ameaça de aniquilação mútua, a corrida espacial. Na ficção, muitas peças do enxadrismo geopolítico estão presentes, como o impasse capitalismo versus comunismo, sem esquecer do Terceiro Mundo em disputa.

Entretanto, Le Guin acrescenta uma rainha alienígena ao tabuleiro: e se tivéssemos ainda uma nação anarquista posicionada? E outros mundos habitados por seres humanos no páreo? Os acréscimos são precisos: com jogadas estudadas, o livro tem o condão de se renovar a cada ano.

O livro possui duas histórias imbricadas, que paralelas traçam a trajetória de um homem entre os planetas gêmeos Anarres e Urras, "nosso planeta é a lua deles; nossa lua é o planeta deles".

A primeira história trata da chegada do dr. Shevek, nativo de Anarres, ao planeta Urras, em jornada fáustica cruzando o espaço em busca de conhecimentos maiores. A segunda história narra sua vida pregressa na forma de um romance de formação: conheceremos os aprendizados de um menino magrinho até que se torne um grande físico proponente da Teoria da Simultaneidade.

URRAS, UMA DISTOPIA FAMILIAR

A primeira história passa-se no planeta Urras e trata de esmiuçar a chegada do primeiro visitante vindo de Anarres em 170 anos. Shevek maravilha-se com a grama macia, o canto de pássaros, com o delicioso "ar de um planeta de onde sua raça viera". Entretanto, encontrará em Urras um embate de sistemas:

Na nação de A-Io, há um governo capitalista e patriarcal, com separação entre classes sociais. Na concorrente Thu, há um governo comunista com direito a Comitê Central Thuviano e censura absoluta, governando em nome do proletariado.

Na distopia urrasti, há tensões globais como na Guerra Fria: em Benbili, "país do tipo retrógrado", ocorrerá conflito armado, disputa entre A-Io e Thu. Em Urras, ainda há diplomatas vindos dos planetas Hain e Terran. O que Shevek iria aprender ali?

Em Anarres, iremos encontrar a extrapolação literária de Le Guin. O planeta, inicialmente mero pólo de mineração, torna-se destino migratório de massas vindas de Urras rumo ao "mundo da Promessa e da pedra árida".

Após um levante revolucionário, massas de trabalhadores deixaram Urras e semeariam, em Anarres, a construção igualitária e feminista de um sonho coletivo: irão abolir o Estado, a propriedade privada.

Com dormitórios e refeitório compartilhados, mulheres terão as mesmas tarefas que homens. Os princípios que ditam a nova cultura são fundados no viver sem excessos, no compartilhar e na liberdade de ação de acordo com cada consciência. Assim, a segunda história narra a vida pregressa de Shevek em Anarres. Na utopia anarquista, ainda bebê aprendeu a não distinguir o que é "meu" e "teu".

O livro começa com Shevek atravessando a fronteira entre o porto espacial e resto do planeta Anarres. Paradoxalmente, no mundo em que não existem prisões, ninguém nunca ousou sair dali após a grande migração. "O planeta inteiro estava dentro do muro".

Seria a função daquele muro proteger a tênue revolução? Ou obrigar as pessoas àquele confinamento da Promessa?

COMO RETRATAR A UTOPIA?

Ursula Le Guin não é boba. Postas as duas histórias lado a lado, atravessar o muro oferece significados simultâneos.

Por um lado, aninha o impulso egocêntrico do dr. Shevek (verdadeira falha de caráter em Anarres) em receber o devido reconhecimento por sua obra. Por outro lado, alimenta-se de um sentimento revolucionário genuíno, a procura por liberdade absoluta de pensar e por conhecimentos maiores.

Retratar a busca pela utopia revela-se, então, a roda do destino, sendo o ápice revolucionário que aprofunda as contradições, ao mesmo tempo em que o fracasso impulsiona um questionamento adiante.

Le Guin é hoje uma senhora de 88 anos, ciente de que fez uso magistral de hipóteses imaginativas de física, estudos linguísticos e teorias políticas em sua literatura.

Os Despossuidos
Ursula K. Le Guin
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O livro agrada a quem gosta de matemática ou de filosofia ou somente de boas histórias. Página a página, nos desafia a imaginar além. Diante do céu escuro, nos aponta a lua, muitas estrelas e possibilidades.

Um livro que dá o que pensar, com o mistério e a força de um clássico, obra que permanece hoje com o frescor do amanhã.

ANA RÜSCHE, doutora em estudos literários em inglês pela USP, é escritora com cinco livros publicados, como o romance "Acordados", e o de poesia, "Furiosa".


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