Folha de S. Paulo


Leia trecho de peça inspirada em grupo revolucionário dos anos 70

Fernando Vilela
Ilustração de Fernando Vilela

SOBRE O TEXTO O trecho nesta página integra a peça "Living Theatre no Brasil: A Febre dos Sonhos", escrita a partir de textos de Judith Malina e Julian Beck, fundadores do grupo americano Living Theatre, que marcou os anos 1970 com um teatro experimental e revolucionário. Com dramaturgia de Felipe de Moraes, o texto terá leitura encenada na segunda (27) e na terça (28), no Sesc Consolação, onde uma exposição celebra a trajetória da trupe.

*

Em ritmo de marchinha:

CORO Quem foi que inventou o Brasil? / Foi seu Cabral, foi seu Cabral / No dia vinte e um de abril / Dois meses depois do Carnaval.

CORO 1 Mesmo com o golpe, como notou um cronista, o país se mostrava "irreconhecivelmente inteligente".

CORO 2 Não só a capital era nova, mas também a bossa... Até o cinema era novo.

CORO 3 A poesia deixou os sabiás nas palmeiras e virou Concreta. E as artes plásticas saltaram das telas para os corpos. Corpos que sambam.

CORO 4 No teatro, passamos a limpo a tradição do moderno e o moderno da tradição. Resultado: "nunca fomos catequizados, fizemos foi Carnaval."

CORO 5 Gente, por favor. Um minuto. Tenho um comunicado. A situação é grave. O Comando de Caça aos Comunistas invadiu a peça "Roda Viva". Eles espancaram os técnicos e os atores.

CORO 6 A coisa tá endurecendo. O Guarnieri foi preso. Sequestraram a Norma Bengell na porta do Teatro de Arena. Tem gente desaparecendo!

CORO 5 Num amplo apelo, a classe teatral de São Paulo pede à população que lote os teatros da cidade nos próximos dias como modo de proteger os artistas contra novos atentados.

CORO É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte.

BECK Julho de 1970, chegamos a São Paulo. Mesmo que as estrelas, quando quer que as olhássemos, derramassem néctar em nossas bocas, e ainda que a relva se transformasse em pão, a humanidade continuaria triste.

MALINA Isha Mana, com apenas 6 anos, aponta para o alto. Juntas observamos a poluição que mancha o céu dessa cidade de arranha-céus.

BECK Todos nos dizem: "tomem cuidado". Mas se nem sabemos o que isso quer dizer.

Um membro do Coro, de óculos escuros:

ZÉ CELSO Eu e Renato Borghi conhecemos o Living em Paris, na casa do famoso ator Pierre Clémenti. Discutimos a situação brasileira, a perseguição aos artistas... Num momento da conversa, por falta de assunto, perguntamos: "Vocês querem vir ao Brasil?" Eles toparam na hora.

MALINA Zé Celso nos hospeda em seu apartamento. O problema é que o Oficina não tem nenhuma subvenção para nós. E não podemos fazer contratos porque o que temos a oferecer ainda não tem nome. Do que vamos viver?

ZÉ CELSO Foi uma troca importante. Discutimos vários projetos e depois quebramos o pau, de lavadeira mesmo, todo mundo xingando, em várias línguas, aquela assembleia da ONU, mas depois baixou um silêncio... E uma transa misteriosa foi aparecendo...

BECK Estamos vivendo o mito de nós mesmos. É hora de criar a realidade.

ZÉ CELSO Nosso rompimento foi traumático. Algumas pessoas do nosso grupo ficaram marcadas por eles, queriam a nossa integração com o Living. Fui acusado de ser um obstáculo, o cacique brasileiro, alguém até disse que eu era uma ameaça. Resolvi morrer ali mesmo. Me atirei na sala, respirei quarenta vezes e parei. As pessoas tentavam me comunicar energias...

Respiram. Energizam.

ZÉ CELSO Durante umas duas horas eu não ressuscitei.

CORO 1 O diretor está morto!

CORO 2 Enfim o espetáculo pode começar.

[...]

Ao som da percussão.

CORO 1 Favela do Buraco Quente, São Paulo. Primeira peça do ciclo teatral: "O Legado de Caim".

MALINA Entramos em procissão. O sol está forte. Muitas crianças nos cercam, seus pés sujos sobre a lama quente.

BECK Nos acompanham alguns alunos da universidade, os únicos que ousaram entrar pela primeira vez numa favela.

MALINA Nos movemos com muita excitação porque este é o nosso primeiro teatro de rua, porque é a entrada para o outro lado do mundo contra a qual fomos advertidos, porque é "noite de estreia" em pleno sol do meio-dia.

BECK Em meio aos barracos e vielas, muitos rostos desconfiados... Precisamos abrir seus corações e mentes.

Beck, num gesto, pede que o coro diminua o volume da música.

BECK Numa cena, amarramos as mãos e amordaçamos a boca de Judith. Depois anunciamos que nenhum de nós, atores, podia libertá-la porque também estamos presos. Presos a nossa classe e algumas roupas. Nós não podemos, mas vocês podem.

MALINA Presa e amordaçada, vejo um homem sair de um dos barracos. Ele vem até mim, muito timidamente, e começa a desfazer as amarras que me prendem. Enquanto me desamarra, o homem de camisa surrada e pele enrugada me diz bem baixinho no ouvido: "amanhã o povo vai libertar o mundo todo".

CORO Amanhã o povo vai libertar o mundo todo.

[...]

MALINA Depois da peça, sentados em nosso ônibus, derretendo em nosso próprio entusiasmo, todos falamos ao mesmo tempo. Mal podíamos acreditar no que havia acontecido: havíamos conseguido. Fomos compreendidos e ninguém nos impediu.

BECK Tomar consciência de que estamos presos a nossa classe, quebrar essa barreira, destruir a unidade. Mobilizar. O começo sem fim. O oceano, finalmente, da vida.

[...]

CORO 1 Embu das Artes, um recanto de hippies e artistas a poucos minutos da capital paulista. Dezembro de 1970. Segunda peça do ciclo teatral: "O Legado de Caim".

MALINA Chove discretamente quando chegamos a esta pequena cidade onde devemos apresentar nosso "Rito da Transformação" em plena praça central.

BECK Uma verdadeira comitiva de autoridades locais vem nos receber. O secretário de Turismo...

SECRETÁRIO Gostaram da faixa que mandei botar na entrada da cidade? "O Living Theatre de Nova York"! Em letras grandes, bem internacional...

BECK O prefeito também estava lá.

PREFEITO Eu preparei algumas palavras, se me permitem...

MALINA Será que podemos pular os discursos? O público tá esperando.

PREFEITO Mas tem um trecho que eu cito Virgílio, em latim!

BECK Até mesmo o delegado apareceu.

DELEGADO Eu li o título da peça: o que vocês querem dizer com transformação?

MALINA Transformar a atmosfera da praça, propor a união dos presentes.

DELEGADO Parece coisa de comunista.

SECRETÁRIO Que nada, eles são americanos. É um lance mais, assim, metafísico.

BECK Dei um aperto de mão no delegado por cima do seu revólver. Um coldre de couro de várias cores, finíssimo, com um desenho bordado. Ele, por fim, nos desejou boa sorte.

[...]

BECK Das Minas Gerais partiu o ouro que fez a riqueza do Ocidente. Voltamos então ao nervo exaurido da acumulação primitiva, ao marco zero do capital, para espiar e expiar a matéria mesma da qual os sonhos são feitos.

MALINA 1º de julho de 1971, dia de abertura do Festival de Inverno de Ouro Preto.

BECK Judith e eu estamos no escritório do restaurante Calabouço, ocupados com nossos mapas e escritos, quando alguém entra de repente e nos diz...

CORO 2 O Dops está na casa de vocês.

Silêncio.

BECK Tínhamos sido avisados de que, por conta do festival, haveria vigilância especial, mas sentíamos que nada tínhamos a temer.

MALINA Na volta para casa, um carro de polícia se detém ao pé de uma ladeira e três policiais vêm em nossa direção. Pelo que vejo nos olhos deles, digo ao Julian: "vão nos prender".

[...]

CORO 6 "Nos primeiros dias de julho do corrente ano foram presos, em Minas Gerais, componentes do grupo teatral internacional Living Theatre, acusados de crime capitulado no artigo 281 do Código Penal. Sua prisão determinou o surgimento de protestos em várias partes do mundo, atribuindo ao governo brasileiro conduta inamistosa para com a classe teatral, o que tem sido explorado por inimigos de nossa pátria na campanha difamatória que empreendem contra o Brasil. Essa campanha tem sido estimulada pelos próprios integrantes do grupo Living Theatre, através de declarações encaminhadas à imprensa internacional, o que constitui também crime contra a segurança nacional. Esse comportamento torna a presença dos alienígenas presos em Minas Gerais absolutamente perniciosa aos interesses nacionais, o que os faz passíveis de expulsão, na forma do artigo 100 do decreto n. 66.689." Assina o presidente da república Emílio Garrastazu Médici.

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FELIPE DE MORAES, 37, é dramaturgo. Doutor em cinema pela ECA-USP, escreve também roteiros e ensaios.

FERNANDO VILELA, 44, é artista e autor de livros ilustrados.


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