Folha de S. Paulo


'Claudia Cardinale tinha disciplina severa', escreve Marina Colasanti

Eu estava grávida, em agosto de 1965, e me preparava para deixar a Redação do "Jornal do Brasil" em licença-maternidade quando recebi uma proposta de trabalho inesperada: substituir o agente de imprensa de Claudia Cardinale, recém-chegada ao Rio de Janeiro para as filmagens de "Uma Rosa para Todos".

Assumi imediatamente, já para a entrevista coletiva com jornalistas. Claudia foi superlativa: uma faixa "pink" como a rosa-título segurava o aplique no cabelo, o decote amplo mal continha os seios, e seu luminoso sorriso pareceu a todos mais inesquecível do que o conteúdo da entrevista.

À sua direita estava Enaldo Cravo Peixoto, secretário de Obras do Rio, representando o governador Carlos Lacerda. E à esquerda, Glaucio Gil, de cuja peça "Procura-se uma Rosa" seria extraída a coprodução franco-italiana que ela tinha vindo estrelar.

Nos dias seguintes, eu descobriria que, encoberto pelo sorriso quase de menina, havia um rigor insuspeitado. Claudia obedecia a uma severa disciplina pessoal. Chegava sempre cedíssimo à maquiagem, entrava no set antes da hora marcada e nunca a vi reclamar de coisa alguma.

O primeiro dia de filmagem foi a bordo de uma traineira, rodeada por um rebocador e lanchas. No segundo, o set era numa espécie de garagem aberta, tudo ao sol. Naquela noite, Claudia deu seu brilho à inauguração do teatro Miguel Lemos. E, na manhã seguinte, às 9h, já estava filmando —e assim permaneceu até as 20h. A batida era essa.

O enredo do filme era repleto de personagens masculinos que esvoaçavam ao redor de Rosa —Lando Buzzanca, Mario Adorf, Akim Tamiroff, além dos atores brasileiros.

No roteiro, um deles —já não me lembro qual— a levava a uma loja de móveis, com o intuito de aproveitar a profusão de camas. A cena de sexo, mais por desejo de Claudia que do diretor, em vez de tórrida, ficou quase casta.

A movelaria era no Catete. Pediram-me para manter a imprensa afastada: Claudia queria discrição. Filmou-se um dia inteiro e mais um segundo até as 3h. A cena era difícil. Claudia exigiu que todos se retirassem do set, menos os câmeras e o diretor, e fez questão de ficar de combinação preta.

Dia seguinte, estiva feroz para Claudia. Subimos o morro da Viúva, sol acima. Filmamos. Terminada a filmagem, sessão de fotos para ela. Em seguida, uma passada no hotel para que trocasse de roupa, fechasse a mala e fosse para o aeroporto, pois tinha compromisso profissional na Itália.

Ela foi levada por mim e por Gaia Romanini, italiana que havia sido aluna do meu tio, professor de cenografia na Faculdade de Arquitetura de Roma, e era figurinista do filme.

Depois que Claudia embarcou, Gaia me pediu para ir a lojas populares, queria ver roupas e figuras bem cariocas. Fomos à rua da Alfândega, e de lá saíram aqueles bobes gigantes que Rosa ostenta em muitas cenas.

Saiu também figurino para os outros atores. Akim Tamiroff, vaidosíssimo, exigia solado embutido nos sapatos a fim de ganhar alguns centímetros e reclamava que Lando Buzzanca aparecia, no filme, mais bem vestido que ele.

Na ausência de Claudia, filmamos externas. Menos de uma semana depois de viajar, ela estava de volta, a postos no Catete, para uma cena com Tamiroff no ateliê do escultor Matheus Fernandes.

A cena era trabalhosa para Claudia, ainda cansada da viagem, e logo naquele dia havia 13 jornalistas no set. E, no aperto entre equipe, atores, câmeras e esculturas, ainda despencou uma estátua.

Antes que acabasse meu contrato, e aproveitando que eu falava italiano, a produção me pediu para traduzir o roteiro. Era para acumular funções; então, durante alguns dias, traduzi com uma mão e, com a outra, levei Gaia à procura de bolsas "brasileiras"; fui num pé até o set e no outro levei Mario Adorf e Buzzanca até a "Manchete" para uma entrevista.

Finalmente, passei o cargo adiante. Tinha assumido um compromisso anterior e fui trabalhar na assessoria de imprensa do Festival Internacional do Filme. Faltava um mês e meio para minha filha nascer.

MARINA COLASANTI, 80, é escritora, jornalista e tradutora. Lançou recentemente "Quando a Primavera Chegar" (Global) e "Um Amigo para Sempre" (FTD).


Endereço da página:

Links no texto: