Folha de S. Paulo


Vinte anos de 'Gattaca' e os dilemas éticos da Era dos Bebês Transgênicos

Alexandre Teles
Ilustração de Alexandre Teles

RESUMO Duas décadas depois de 'Gattaca', filme sobre discriminação genética, o poder real de manipulação do DNA aumentou, mas ainda estamos longe daquela distopia. Mesmo assim, preocupações éticas quanto a uma Era de Bebês Transgênicos já se justificam, enquanto a prometida medicina de precisão apenas engatinha.

*

Em 12 de setembro de 1997, jornais americanos traziam um anúncio de página inteira oferecendo bebês sob encomenda. A propaganda incluía o telefone 1-888-4-BEST-DNA, o endereço www.gattaca.com e uma frase enigmática: "Infelizmente, não existe um gene para o espírito humano".

A peça destacava 13 itens de melhoramento para a prole do futuro cliente, de sexo e cor dos olhos à ausência de suscetibilidade para dependência química e baixa tendência para agressividade criminosa.

Uma leitura atenta detectaria as ironias a indicar que se tratava de golpe publicitário, como no tópico a respeito de calvície precoce: "Pode sair mais caro agora, mas pense em quanto dinheiro ele [seu filho] economizará com perucas dentro de 20 anos".

Os 20 anos se passaram, e o filme "Gattaca" (1997), de Andrew Niccol, continua atual.

O determinismo genético de que a publicidade fazia troça está mais enraizado do que nunca na mentalidade e na linguagem contemporâneas. Isso embora a ciência praticada nos laboratórios comprove, a cada dia, a falta de base para essa maneira fundamentalista de encarar o DNA.

E, por mais que avance a possibilidade técnica de modificar geneticamente seres humanos, bebês transgênicos ainda são ficção.

O FILME

Apesar de reunir astros como Ethan Hawke, Uma Thurman e Jude Law, o longa fracassou na bilheteria. Tornou-se cult, porém, e foi descrito pela agência espacial americana, a Nasa, como o filme de ficção científica mais plausível até então realizado.

O enredo distópico refletia bem o estado da arte da genética naquela época —e a afirmação, de certa forma, continua válida.

Temos cada vez mais instrumentos para detectar variantes de genes associadas com a probabilidade de um indivíduo manifestar certas doenças ou características, mas ainda há muita distância a percorrer até que se alcance a medicina de precisão que Barack Obama propagandeou em seu discurso sobre o Estado da União em 2015.

O problema é que, ainda hoje, as mazelas prognosticadas pela genética, em sua maioria, não têm cura. Assim, não resta muita opção além de sonhar com a intervenção eugênica: selecionar embriões, ou mesmo alterar seu quinhão de genes, para que cresçam o mais perfeitamente possível.

Dessa forma funciona a sociedade de "Gattaca": a população está dividida entre os geneticamente válidos (que têm bons genes, escolhidos a dedo) e os in-válidos (frutos do acaso reprodutivo, e por isso tidos como seres inferiores).

Vincent Freeman (Ethan Hawke) tem um sonho impossível para um in-válido: tornar-se astronauta. Somente portadores de DNA superior conseguem ser selecionados para trabalhar na corporação aerospacial Gattaca. O mais perto que o protagonista chega disso é trabalhar como faxineiro na empresa. Enquanto limpa o teto do prédio, perde-se a contemplar as estrelas e os foguetes que decolam.

Freeman —"homem livre", em inglês— revela-se, entretanto, movido a pura força de vontade, o "espírito humano" cultuado pelo cérebro do filme, Niccol.

Partindo para a trapaça, assume a identidade de Jerome Morrow (Jude Law), possuidor de genes perfeitos que se torna cadeirante recluso após sofrer um acidente. Morrow cede a Freeman cabelos, sangue, pelos, urina, escamas de pele e o que mais for necessário para forjar amostras colhidas pelo equivalente de uma polícia genética.

O nome do meio de Morrow é Eugene, alusão um tanto óbvia a eugenia. Mais cifrado é o nome da empresa, Gattaca, formada com as letras G, A, T e C que identificam os quatro tipos de bases nitrogenadas com que se codificam os genes na dupla hélice da molécula de DNA —tampouco é por acaso que o elemento central da casa de Morrow é uma escadaria com esse formato.

Alexandre Teles
Ilustração de Alexandre Teles, inspirada no filme 'Gattaca'

A história se adensa com um assassinato nas dependências de Gattaca e um romance de Freeman com Irene Cassini (Uma Thurman) —outro nome significativo, homenagem ao astrônomo italiano Giovanni Cassini (1625-1712). Mesmo pertencendo à classe dos válidos, a moça tem uma combinação de genes que lhe dá alta propensão para doença cardíaca, o que a impede de ir ao espaço.

Outro fio dramático envolve uma disputa no mar em que o protagonista vence seu irmão geneticamente superior.

A mensagem central não passa despercebida a ninguém: trata-se de execrar a eugenia e a discriminação propiciada pelas técnicas do DNA, ao mesmo tempo em que se celebra a liberdade e a determinação de alterar o próprio destino.

DETERMINISMO

Elogio da Nasa à parte, "Gattaca" não foi bem recebido por geneticistas, para os quais Niccol pintou um futuro determinista em demasia (no filme, tudo se passa como se os genes definissem a biografia de cada um) apenas para demoli-lo com o personagem vivido por Ethan Hawke.

Justamente eles, os cientistas de 1997, que já se encontravam engajados numa grande operação de propaganda para justificar os US$ 3 bilhões investidos no Projeto Genoma Humano, que apresentaria três anos depois a sequência completa do que então gostavam de denominar "Livro da Vida".

Em 26 de junho de 2000, na Casa Branca, Bill Clinton —acompanhado pelo premiê britânico Tony Blair em conexão de vídeo— reuniu dois cientistas de renome, Francis Collins e Craig Venter, para anunciar oficialmente a finalização da leitura do genoma humano.

Collins estava lá por liderar o consórcio internacional de cientistas; Venter fundara a empresa privada Celera, que ameaçava ganhar o páreo correndo por fora do Projeto Genoma capitaneado por instituições de pesquisa e em grande parte financiado por governos, EUA e Reino Unido à frente.

Outros textos desta edição

Foi menos um anúncio científico confiável do que um show para marcar o armistício entre dois grupos em disputa pela propriedade intelectual dos resultados.

Para começar, o trabalho não estava terminado, era só um rascunho. A sequência final do genoma seria publicada apenas três anos depois, quando se comemorou o cinquentenário da descoberta da estrutura da dupla hélice por James Watson e Francis Crick.

E o que os projetos haviam realizado era em realidade uma soletração do genoma, não sua leitura. Mal se sabia reconhecer no "texto" genômico —analogia boa, desde que não ganhe ares de Escritura— o que eram palavras (genes), para nada dizer do que significavam e das transformações semânticas que poderiam sofrer quando combinadas com outros vocábulos.

Isso não impediu Clinton de proclamar que, graças à genômica, os filhos de nossos filhos conheceriam a palavra "câncer" apenas como o nome de uma constelação de estrelas.

Clinton estava tão distante da realidade quanto Vincent Freeman das luas de Saturno antes da manobra com os fluidos corporais de Jerome Morrow. E ainda estamos todos, pois não temos a cura do câncer nem conseguimos consertar os genes dos nossos filhos por nascer, embora alguns passos nessa direção tenham sido dados.

OUTRA PELE

Em 2015, Michele De Luca, da Universidade de Módena (Itália), viu-se diante de um caso extremo repassado por colegas alemães: um menino sírio refugiado tinha perdido 80% da pele como resultado de um quadro de epidermólise bolhosa.

Um defeito genético no código para a proteína laminina impedia a fixação correta da epiderme na derme, formando bolhas que se rompem facilmente e podem originar infecções graves, às vezes fatais.

Conforme relato da revista "The Scientist" baseado em artigo no periódico científico "Nature", a chance de sobrevivência do garoto era mínima. Assim, De Luca considerou justificado aplicar-lhe um tratamento experimental até então utilizado apenas para pequenos enxertos de pele transgênica, obtida com a modificação de células do próprio paciente para conferir-lhes uma versão corrigida do gene em questão.

Um trecho de epiderme não afetada foi extraído do menino, a partir do qual se cultivaram células em laboratório. A seguir, elas sofreram modificação, ou transgenia, com a ajuda de vírus carregando cópias do gene funcional com o código da proteína laminina (partículas virais conseguem contrabandear sequências genéticas estranhas para as células infectadas, mecanismo que utilizam para se reproduzir).

Confeccionou-se então um tipo de pele artificial a partir das células transgênicas, com a qual se recobriram áreas críticas do corpo do refugiado, na passagem de 2015 para 2016.

Dois anos depois, o paciente tem uma pele normal, firmemente aderida ao corpo.

A façanha de Luca atesta o enorme progresso realizado pelas técnicas de manipulação genética desde que as fantasias de Niccol e Clinton ganharam a praça.

CRISPR

A mais recente e destacada proeza atende pelo nome Crispr (a sigla, que se pronuncia "crísper", corresponde em inglês a "Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats") e foi aplicada a células humanas pela primeira vez em 2013.

Entre seus inventores está Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia em Berkeley. Ela conta a revolução que ajudou a iniciar no livro "A Crack in Creation" (algo como "uma ruptura na criação", mas o título hiperbólico, como de hábito no discurso da genômica, também alude à "quebra" de códigos).

A técnica Crispr permite intervenções muito precisas em genes e outras sequências de DNA, letra por letra. A facilidade é muito maior que nos elaborados procedimentos com DNA recombinante iniciados em 1972 e patenteados pela Universidade Stanford (EUA) em 1980, em nome de Stanley Cohen e Herbert Boyer.

Além de abrir as portas para modificações como a que salvou a pele do menino sírio, a novidade deu combustível novo para a imaginação desenfreada que sempre ronda a pesquisa genética.

No setor agrícola, por exemplo, já surgem aplicações do método, como a edição de genes da soja, a fim de que produza um ácido graxo importante para a indústria de biscoitos, e os melhoramentos em culturas como milho e arroz.

Entusiastas acreditam que essa forma de modificação genética, por sua precisão e por prescindir da inserção de DNA de espécies não aparentadas (como um gene de bactéria na soja resistente a herbicida), ajudará a reduzir a resistência do público a alimentos transgênicos.

NOVA EUGENIA

Não demorou muito a ser ventilada a ideia de aplicar a Crispr não só a células humanas cultivadas em placas no laboratório e a tecidos para terapia genética, mas também em embriões.

Foi o que bastou para que se começasse a falar também em renascimento da eugenia, pois estaríamos no limiar do que prometia o anúncio de "Gattaca" em 1997: escolher para os descendentes DNA correspondente a características específicas.

Noves fora o fato de que nem sequer se conhecem os genes envolvidos em características como inteligência, estatura ou baixa agressividade (provavelmente são muitos e dependem da influência do meio para se ativarem em combinações peculiares), a própria capacidade de aplicar a técnica com sucesso e segurança nos embriões ainda se encontra em discussão.

No final de 2015, um simpósio internacional sobre edição de genes realizado em Washington, D.C. por várias academias de ciência propôs uma moratória na utilização da Crispr à linhagem germinativa de células humanas, até que se obtenha consenso sobre os limites éticos para tais aplicações.

A expressão "linhagem germinativa" serve para acentuar o fato de que, uma vez modificados os genes de um embrião, as alterações serão transmitidas para sua descendência. Uma diferença e tanto em relação às células somáticas modificadas para terapia genética convencional, que morrem com o indivíduo tratado, não se transmitindo à geração seguinte.

Transpor esse limiar sempre causou inquietações de fundo ético, e não só entre conservadores e religiosos para quem soa pecaminoso "brincar de Deus". Mesmo para quem se pauta nesses assuntos pela teoria da evolução, e não pela Bíblia, modificar o DNA de um organismo sem o controle da seleção natural darwiniana implica risco de efeitos não pretendidos, com consequências imprevisíveis.

Mas, como sempre, essa linha já começa a se mover sob pressão da realidade criada pela tecnociência: em fevereiro de 2017, as academias americanas de ciência e de medicina, em novo relatório, na prática propuseram suspender a moratória ao declarar permissível empregar Crispr também para tratar ou prevenir doenças e deficiências em células germinativas.

"A edição de genomas na linhagem germinativa foi conduzida com sucesso em animais, mas grandes desafios técnicos permanecem por resolver no desenvolvimento da tecnologia para uso seguro e previsível em humanos", afirma o relatório.

"Apesar disso, essa linha de pesquisa é de interesse porque há milhares de doenças hereditárias causadas por mutações em genes singulares [...]. Editar células germinativas poderia reduzir o ônus da doença hereditária para a criança e permitir aos futuros pais portadores das mutações causadoras ter filhos biológicos sem o risco de lhes transmitir as mutações."

LIMITES

A fronteira ética parece estar em movimento, mas ainda permanecem os desafios técnicos.

No final de agosto de 2017, pesquisadores da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon (EUA) anunciaram no periódico "Nature" ter usado Crispr para corrigir em embriões (em laboratório, sem gerar gravidez) uma mutação no gene MYBPC3 que causa a condição chamada cardiomiopatia hipertrófica, na qual se espessam as paredes dos ventrículos do coração.

Uma semana depois, seis cientistas publicaram no portal aberto bioRxiv uma crítica em que lançavam dúvidas sobre os resultados do grupo de Oregon.

O ponto em debate era a conclusão mais paradoxal do trabalho criticado: para seus autores, o embrião, buscando contornar a deficiência, teria usado a cópia normal do gene MYBPC3 que recebera da mãe, e não a sequência de DNA editada fornecida pelos pesquisadores.

Em outras palavras, o artigo original não relatava propriamente um sucesso da Crispr, mas um fenômeno inesperado e misterioso. No entanto, para outros especialistas, nem mesmo isso foi considerado suficientemente provado. Os meandros do DNA ainda são enigmáticos para nós.

Até que essa controvérsia se desfaça e outros genes venham a ser editados com sucesso em células germinativas, não será possível dar por iniciada a Era dos Embriões Transgênicos. O mundo de "Gattaca" terá de esperar, mas nem por isso os engenheiros genéticos se detêm diante da tentação de "brincar de Deus" —e já se propõem a criar um genoma humano a partir do nada, ou seja, por meios inteiramente artificiais.

Se o primeiro Projeto Genoma Humano (HGP, na abreviação em inglês) tratou de soletrar os 3 bilhões de caracteres que codificam o que nos anos 1990 se chamava de "Livro da Vida", o Projeto Genoma-Escrita (GP-write) se propõe a escrever, ou sintetizar, uma obra inédita para instalá-la em células humanas a fim de estudar em detalhe seu funcionamento.

O consórcio em formação reúne mais de 200 cientistas de 15 países no Centro de Excelência para Bioengenharia.

"O GP-write é um projeto de pesquisa internacional aberto conduzido por um grupo multidisciplinar de líderes científicos que vão supervisionar uma redução de custos à ordem de um milésimo, nos próximos dez anos, para projetar e testar grandes genomas em linhagens celulares", diz sua apresentação.

"Além disso, o GP-write está desenvolvendo novas tecnologias e um termo de referência para engenharia de escala genômica, assim como aplicações médicas transformadoras. O objetivo abrangente de tal esforço é entender a planta-base da vida fornecida pelo Projeto Genoma Humano (HGP-read)."

HORIZONTE

Quase duas décadas se passaram desde o anúncio feito por Clinton, e as aplicações médicas transformadoras prometidas pela genômica ainda estão no horizonte, mas não ao alcance. Não se pode negar que houve avanços, mas eles são bem mais localizados e restritos do que a retórica que os acompanha gostaria de fazer crer.

Além de obter testes e instrumentos mais precisos para fazer o que já se fazia antes —detectar em embriões defeitos em genes singulares que causam doenças raras e em geral incuráveis—, o desenvolvimento da genômica aperfeiçoou vários diagnósticos e prognósticos, que no entanto não dispensam informações sobre histórico familiar e estilo de vida do paciente, pois estas permanecem relevantes para avaliar e interpretar o que está escrito no DNA.

Testes genéticos para mutações conhecidas em genes como BRCA-1 e BRCA-2 ainda informam apenas probabilidades relativas de desenvolver câncer de mama ou ovário, por exemplo. Explicam somente pequena porcentagem dos casos: mutações genéticas herdadas estão relacionadas com 5% a 10% de todos os cânceres.

Alguns testes que abarcam grandes painéis de genes podem atribuir risco até 60% maior de certos pacientes desenvolverem doenças cardíacas, mas eles continuarão a tomar os mesmos remédios. Ninguém põe em dúvida sua utilidade por isso, mas as limitações preditivas e terapêuticas que carregam contrastam fortemente com a percepção pública quanto aos poderes definitivos do DNA.

Mesmo a farmacogenômica, incensada como a base da medicina de precisão por facilitar a previsão da eficácia de certos remédios de acordo com o perfil genético do paciente, ainda está na sua infância clínica, por assim dizer.

Na versão inicial de "Gattaca", que nunca chegou a ser exibida, o final vinha acompanhado de letreiros com imagens de pessoas que não teriam nascido caso a profilaxia eugênica já tivesse eliminado do patrimônio genético da espécie certas deficiências congênitas: Abraham Lincoln (síndrome de Marfan), Albert Einstein (dislexia), Stephen Hawking (esclerose lateral amiotrófica), Vincent van Gogh (epilepsia) e outros.

Após a passagem desses rostos icônicos, a série se fechava com um frase bem mais direta que a referência romântica ao "espírito humano" do anúncio falso sobre o filme: "Obviamente, outro nascimento que poderia nunca ter acontecido é o seu próprio".

Não espanta que o filme tenha fracassado na bilheteria. Ainda hoje, como há 20 anos, ninguém gosta de ser confrontado com o que não quer ouvir.

MARCELO LEITE, 60, é repórter especial da Folha e autor do livro "Promessas do Genoma" (Editora Unesp, 2007).

ALEXANDRE TELES, 38, é artista plástico.


Endereço da página:

Links no texto: