Folha de S. Paulo


Diretor de som explica como trilha de 'Vazante' recria universo escravista

RESUMO Vasco Pimentel, premiado diretor de som português, veio ao Brasil pela primeira vez para as filmagens de "Vazante", de Daniela Thomas. Neste texto, ele redescobre explica o processo de criação da trilha do longa, cujo objetivo era levar o espectador a uma imersão no universo da fazenda escravagista do século 19.

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Foi somente dois anos atrás que desembarquei no Brasil. E o fiz pelo cinema: foi o filme brasileiro "Vazante" que provocou a minha imersão na natureza e na história deste país.

Vim ao Brasil como diretor de som, com a missão de construir o habitat sonoro dos personagens do filme, aprisionados no microcosmo infernal de uma fazenda mineira nos últimos estertores da colônia. Pediram-me que trouxesse o meu jeito de ouvir. Deram-me o Brasil do interior de Minas Gerais para colher sons, velhos, novos, desconhecidos ou apenas sonhados.

Ricardo Ganhão
Vasco Pimentel no set de "Vazante", de Daniela Thomas

Os primeiros portugueses que desembarcaram nas costas do Brasil, no século 16, traziam consigo um desejo: que existisse, neste mundo baixo e terreno, um lugar onde sobrevivesse, escondido, o paraíso do Gênesis.

Esse desejo estava legitimado por inúmeros textos (bíblicos, gregos ou místicos de vários matizes). E na imaginação delirante de meus conterrâneos, a localização daquele paraíso sonhado era essa terra ainda desconhecida.

O Brasil seria, assim, um lugar de antes da árvore do conhecimento, de antes da tentação, do pecado e da condenação divina. Ali não poderia haver senão inocência, concórdia e abundância de riquezas inimagináveis -a visão do paraíso sobre a qual escreveu Sérgio Buarque de Holanda.

Rapidamente, porém, o paraíso aguardado pelos portugueses se revelou um inferno. A natureza mostrou-se cruel e impenetrável; o sertão teimava em não se erguer em montanhas reluzentes de ouro e diamante; os índios "impolutos" mostravam-se ferozes e indomáveis.

A esse inferno os portugueses trataram de acrescentar um ainda pior: o inferno dos negros. Durante longos séculos, milhões de africanos foram capturados em suas terras, embarcados, transportados e forçados a viver em cativeiro e trabalhar de graça nas casas, fazendas e minas de um reduzido número de colonos europeus.

A humanidade brasileira foi forjada nestes dois encontros desumanos dos portugueses: com os índios e com os negros.

MUNDO SONORO

Eu, quando cheguei, não vi o Brasil; primeiro o ouvi. Pousei de noite, meti-me num carro de vidros fumados, adormeci e acordei já no cerrado mineiro, onde estava escuro outra vez. Pedi para parar o carro e desligar o motor: eu precisava ouvir.

Um panorama infinito se revelou, em vastíssimas perspectivas de insetos, sapos, pássaros. O tempo parado, o tempo de sempre, a "Lux Aeterna" em som. A minha visão do paraíso, invisível, ensurdecedora. As notas, sons de inesperados instrumentos musicais, com as quais pretendia compor os diferentes andamentos da sinfonia de "Vazante".

Chegando à fazenda, eu não quis falar nem ouvir ninguém. Trazia a tiracolo o meu gravador e o par de microfones já em riste. Power on. Nossa. Ponho-me a "ler" aquele espaço perdido, a descobrir, voraz, as diferentes zonas, os nichos sonoros.

Aos poucos me são reveladas as várias horas do dia, onde e quando pia esse passarinho de som penetrante, onde se reúnem aqueles outros mais roucos, onde fica aquele triste e solitário que pia, desolado, lá muito ao longe, em glissando descendente dois tons e meio?

Onde devo estar —vou caminhar até descobrir— para obter um panorama largo, com o desolado em primeiro plano, três bem-te-vis a meia distância, um pacu do lado direito e um bando de maritacas que se afastam em algazarra?

Quero encontrar um brejo, uma poça onde haja sapos, não tem como não ter. E isso que estou ouvindo é mesmo sapo? Por que é que rosna como um boi cansado? E esses trilos desencontrados, em ritmo de funk, ao cair da noite, é sapo? Mil sapos? Mil sapos mais dois insetos e quem sabe um derradeiro pássaro predador?

Mas o mergulho na natureza foi apenas o começo e meu trabalho prosseguiria em uma imersão inesperada, cada vez mais perplexa, na paisagem humana de "Vazante".

A diretora Daniela Thomas, em seu rigor maníaco, já havia me adiantado que no microcosmo da fazenda mineira do século 19 cruzavam-se os vários "falares" da língua portuguesa: "Vasquinho, ouça bem: tem tropeiro português que acabou de chegar da sua aldeia lá no reino; tem menina que já nasceu na fazenda, criada por mucama, e a mucama é escrava de casa, tem o seu português peculiar, que ensina para a menina; tem escravo africano que acabou de chegar nem sabe onde. Tem de tudo. E eu quero tudo. Esteja muito atento".

IDIOMAS

E eu estive. Com meus ouvidos de português recém-desembarcado do reino, como o tropeiro protagonista, detectei fenômenos linguísticos que, por si sós, contavam séculos de história.

Em primeiro lugar, as dezenas de atores quilombolas (velhos, muito velhos, mulheres, crianças). Suas canções, suas histórias, o som da sua fala: tudo me soava impregnado de palavras e sonoridades que eu conhecia do quimbundo, do umbundo, das línguas mandingas e moçambicanas.

Essa constatação surpreendente me permitiu ir mais além na construção posterior dos ambientes de "Vazante": utilizei abundantemente sons que tinha gravado nas aldeias de Moçambique. Multidões, gritos, pequenos grupos. São essas vozes moçambicanas que povoam a fazenda do filme, casadas com vozes que a Daniela me sugeriu que buscasse no incrível documentário "Terra Deu, Terra Come" (Rodrigo Siqueira, 2010).

Em segundo lugar, os escravos recém-chegados à fazenda. Eles não sabem onde estão, não entendem uma palavra do que ali se fala. Eles não entendem, sequer, uns aos outros: fazendeiros, tropeiros e traficantes intencionalmente misturavam culturas (e, assim, línguas, costumes e crenças) diferentes no mesmo lote de "negros da costa", com o objetivo de lhes dificultar a comunicação, o entendimento mútuo e a solidariedade.

Cada fazenda era um pequeno universo em que ninguém entendia o que o outro falava. O capataz negro do filme diz: "Não é bantu, eu não entendo o que esse negro diz". Não entende ele e não entende ninguém. Muito menos nós, espectadores do século 21, transportados sem aviso prévio para esse absurdo microcosmo da fazenda mineira escravista.

Em último lugar, a fala dos brancos —que em "Vazante" quase não falam. No ecossistema altamente codificado da fazenda oitocentista, a fala tinha um lugar quase inexistente. Na casa grande imperava um silêncio solene. Falava-se por fórmulas cerimoniosas, arcaicas, previsíveis e estéreis. Impensável falar o pensamento, as ânsias, os desejos e os medos. As palavras serviam para esconder a vida invisível que fervia na mente de cada um.

Isso foi muito trabalhado pela Daniela, pelo Inti Briones, diretor de fotografia, e por mim: buscar tempo, buscar proximidade/afastamento, buscar uma coreografia de espaço-tempo que permitisse adivinhar o que o som da fala não diz e compreender essa teia mortífera de olhares, silêncios e distâncias que habitavam a casa grande.

A mim coube fazer com que esse silêncio fosse invadido pelo que gritava lá fora, nos apelos lancinantes da natureza e da senzala que entravam, tremendos, pelas frinchas das janelas.

SUPLÍCIO

A trilha sonora de "Vazante" é o som que as personagens só podem ouvir por si próprias. Do som —assim como da fazenda, da casa grande e da senzala— não se pode escapar. Podemos olhar para outro lado, mas não ouvir para outro lado.

O filme é, por isso mesmo, um suplício que se pede ao espectador: de ser imerso no mundo incompreensível da fazenda escravista, renunciando ao conforto proporcionado por explicações póstumas, só possíveis passados muitos séculos.

"Vazante" pede que sejamos expostos a esse universo, assim como as personagens são expostas umas às outras, e assim como todos nós somos expostos a todo som.

O som não tranquiliza, ele desperta e adverte, inquieta e não revela sua origem. O som existe, aliás, para isso mesmo: nos alertar para coisas que se escondem. Revelá-las seria, consequentemente, retirar alguma potência ao som. É essa natureza misteriosa do som a sua função mais vital.

A minha história de ouvir o Brasil apenas começou. Os meus ouvidos de português do velho e exíguo mundo europeu descobriram aqui todo o som que a língua portuguesa foi perdendo. Cada vez mais fechada, pequena, pobre, doente e amorfa, a nossa. Cada vez mais enérgica, aberta, franca, ágil e ritmada, a vossa. A riqueza histórica do nosso português originário é, curiosamente, em seu português derivado que ouço.

Bravo a você, Brasil.

VASCO PIMENTEL, 60, diretor de som português, trabalhou em filmes como "Tabu", "As Mil e Uma Noites" e, mais recentemente, "Vazante".


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