Folha de S. Paulo


Preso durante peça na ditadura, Celso Frateschi lembra encontro com algoz

Inverno do ano de 1973. Dois anos antes, com a confirmação do exílio de Augusto Boal, havíamos deixado o Teatro de Arena e passamos a ocupar o espaço que funcionava na sobreloja do Teatro São Pedro. Lá apresentávamos o espetáculo "A Queda da Bastilha".

O teatro, coordenado por Maurício Segall, resistia teimosamente à ditadura militar. Alguns de nós já havíamos sido sequestrados pela Oban [Operação Bandeirante], Dops e DOI-Codi, mas naquele momento estávamos completamente envolvidos com nosso fazer teatral.

"A Queda da Bastilha" era um espetáculo que começava na rua, com um grupo de mendigos franceses de 1789 que teria desembarcado na esquina em frente ao Teatro São Pedro. Meu personagem aproveitava para fazer algum dinheirinho guardando vagas de automóveis, e a de Denise Del Vecchio vendia flores.

Arquivo pessoal
Edson Santana (esq.), Celso Frateschi (no alto), Ademar Rodrigues (dir.) e Selma Pellizon, encenando a peça "A Queda da Bastilha" em 1973

Sempre achei divertido ver a expressão do público que, depois de reclamar da minha função de flanelinha na rua, me reconhecia no palco como ator do espetáculo.

Nossa vida era vivida naquela esquina da rua Albuquerque Lins com a Barra Funda. Passávamos o dia trabalhando no teatro e frequentemente almoçávamos no boteco no outro lado da rua.

Nos intervalos dos ensaios, era nesse boteco que tomávamos café —por vezes até um conhaque de gengibre (era mais barato)— e jogávamos conversa fora.

Começaram então a circular por ali, com mais frequência que o desejável, veraneios com calotas pintadas. Pessoas estranhas passaram a dividir conosco o balcão do boteco na hora do almoço e nos cafezinhos.

Tinha um que sempre tentava puxar conversa. Não era uma pessoa agradável, apesar do esforço que fazia para parecer simpático. Tinha barba e cabelos compridos como os nossos, mas claramente não era um de nós. Seu riso era forçado como um relincho, sempre num volume exagerado. O que o riso não conseguia esconder, o riso no olhar escancarava.

"Estão à caça de alguém", pensávamos e comentávamos entre nós. "Seria bom se soubéssemos quem, para poder avisar."

Os anos não eram fáceis e sabíamos disso na própria pele. Do nosso grupo, Boal estava exilado, Heleny Guariba desaparecida e Maurício num intervalo de prisões. Eu, Dulce e Hélio Muniz também já tínhamos experimentado os cativeiros paramilitares.

Doía saber que alguém iria passar pela violência da prisão política. Mas não podíamos fazer nada. Fazíamos teatro!

Durante os ensaios de "A Queda da Bastilha", precisávamos de espelhos para o nosso cenário e o dinheiro da produção já havia acabado.

Ruth Escobar tinha encerrado a temporada de "A Viagem", na qual usava uma sala toda forrada de espelhos, por onde o público entrava. Ela gentilmente os cedeu e fomos ao trabalho, eu e Chibé, cenotécnico do São Pedro.

Ao soltar o primeiro espelho da parede, todos os demais desabaram sobre nós, causando um estrago considerável no meu rosto e no dele, além de cortar os tendões dos dedos da minha mão direita.

Isso me obrigou a fazer a peça com o braço enfaixado, na tipoia, e com curativos no rosto. Na verdade, isso favorecia muito a verossimilhança do personagem mendigo que eu representava.

Pouco antes do início da função, Jaci, que fazia a bilheteria, fez sinal para que eu me aproximasse e relatou que um grupo muito estranho tinha comprado ingressos para o espetáculo.

Nesse momento, percebi que a caça que eles campeavam era bem próxima de nós, mas nada havia a fazer. Respirei fundo. Subi as escadas do teatro e já estava entrando na sala de espetáculo, pronto para dar a minha primeira fala, quando recebi voz de prisão e percebi a pistola 45 apontada para mim.

Foi muito desagradável chegar ao palco e encontrar não o espectador mas o meu algoz, que dias atrás tomava um cafezinho dividindo comigo o balcão do boteco.

Denise tentou protestar: "Ele é um ator, o que é isso? Ele é meu marido!" A resposta foi curta e grossa: "Se é teu marido, então você vem junto também."

Ficamos no DOI-Codi três semanas. Ao entrar pelos corredores da prisão, senti a preocupação dos olhares e cochichos de meus companheiros ao me verem todo enfaixado e machucado. Não tinha como avisá-los que era apenas maquiagem para o nosso espetáculo.

A nossa Bastilha demorou muito para cair. O Teatro São Pedro conseguiu resistir por mais um ano e meio, e a ditadura militar por muito mais tempo.

CELSO FRATESCHI, 65, é ator e diretor. Está em cartaz com o monólogo "Sonho de um Homem Ridículo" no Ágora Teatro até 10/12.


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