Folha de S. Paulo


Ópera 'Carmen' tira ofensas à bandeira espanhola em meio à crise catalã

O Teatro Real trouxe a Madri uma das montagens mais aclamadas da ópera "Carmen" (1875). A produção, lançada em 1999 pelo diretor espanhol Calixto Bieito, foi também exibida recentemente na Ópera Nacional de Paris.

A peça mantém o texto do original de Georges Bizet, mas atualiza a ambientação. A história se passa nos anos 1970, e não mais no século 19, e os soldados foram transformados nos legionários espanhóis da ditadura de Francisco Franco (1939-1975).

O cenário é agora uma região fronteiriça, como a que divide, em Ceuta, o território espanhol do marroquino, e a trupe de Carmen formada por contrabandistas.

Um dos êxitos de Bieito em sua montagem original foi, com uma iconografia simples, fazer de "Carmen" uma poderosa história sobre a violência de gênero. A protagonista não tem ares de libertina, como em outras versões, mas de mulher livre punida pelo ciúmes dos amantes.

Mas a versão que chegou este ano ao Teatro Real decepcionou quem esperava o radicalismo do diretor.

Sua "Carmen" de 1999 era conhecida, afinal, pelas cenas quase iconoclastas envolvendo a bandeira espanhola —originalmente usada em cena para limpar o chão, a bunda e um carro.

Na nova montagem, o teatro preferiu substituí-la por um pano sem símbolos. Essa opção está relacionada ao delicado momento vivido pela política espanhola, que enfrenta nestes meses o desafio separatista da região catalã.

Mesmo a manutenção dos legionários em uniforme foi controversa, por conta do embate entre polícia e manifestantes na Catalunha em 1° de outubro, que deixou quase 900 feridos, segundo a conta de Barcelona (contestada por Madri).

Ángel Garrido, porta-voz do governo regional da capital, afirmou a jornalistas antes da estreia da ópera que "duas das cenas suscetíveis de provocar algum problema" haviam sido retiradas. A veículos locais, os diretores do teatro falaram em "ajustes" na produção, mas não explicaram a ausência dos símbolos.

BANDEIRAS

A bandeira espanhola, que se safou da cena de sexo no Teatro Real, serviu no entanto de símbolo durante protestos envolvendo a separação da Catalunha. Grupos contrários à cisão penduraram o estandarte nacional em janelas e se enrolaram nele quando tomaram as ruas em Madri e Barcelona.

Já os independentistas tremularam outras duas auriflamas: a "senyera", bandeira regional catalã, com cinco faixas amarelas em um fundo vermelho; e a "estelada", símbolo separatista que adiciona um triângulo e uma estrela à outra.

Apesar das disputas, os símbolos rivais resultaram em algumas das imagens mais otimistas desta crise, como a que mostra um manifestante embrulhado na bandeira espanhola de mãos dadas com outro coberto por um símbolo separatista.

BOTIFLER E CABRÓN

A crise não reavivou apenas os nacionalismos, mas também o insulto "botifler" —palavra catalã de etimologia desconhecida usada para ofender os demais espanhóis contrários à independência.

Segundo o jornal "El País", o termo era originalmente utilizado para se referir aos seguidores da dinastia Bourbon, ainda no trono na Espanha. A dinastia não é muito querida pelos separatistas —foi o bourbon Felipe 5° que tomou Barcelona em 1714.

O periódico aponta duas possíveis origens à palavra: pode ter vindo do francês "beauté fleur", transformado em "botifler" no catalão; ou de "bot unflat", expressão catalã usada nos séculos 17 e 18 para se referir de maneira pejorativa a uma pessoa rica.

"Botifler" tem hoje um significado próximo ao de "traidor", e recentemente saiu da boca de separatistas para ofender líderes políticos como o socialista Miquel Iceta, contrário à secessão.

Em especial nas redes sociais, também foram resgatados por separatistas radicais xingamentos históricos como "facha" (fascista), "nazista" e "franquista" —referência ao general Franco, que perseguiu líderes defensores da cisão e restringiu o uso do catalão.

O cantor Joan Manuel Serrat, por exemplo, foi chamado de "facha" por ter criticado o plebiscito separatista de 1° de outubro —considerado ilegal por Madri.

Do outro lado do campo, também houve ofensas. O jogador Gerard Piqué, do Barcelona, criticou a polícia espanhola pelos embates durante o plebiscito. Em um treinamento aberto, ouviu a plateia gritar: "Piqué, cabrón, España es tu nación!"

DIOGO BERCITO, 29, é correspondente da Folha em Madri e assina os blogs Mundialíssimo e Orientalíssimo no site do jornal.


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