Folha de S. Paulo


Foto de menino afogado levou repórter à Síria para cobrir crise dos refugiados

RESUMO No livro "Lua de Mel em Kobane", que a Companhia das Letras lançará no dia 30, a autora relata a história de um homem e uma mulher recém-casados que ficam sitiados numa cidade da Síria em meio à guerra civil que assola o país. No trecho nesta página, a repórter especial da Folha conta como foi o início da cobertura.

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Debaixo de um toldo, um amontoado de gente esperava pelos barcos de alumínio que fazem a travessia do rio Tigre, entre a Síria e o Iraque. Fazia um calor insano. Era fim de setembro de 2015.

As pessoas carregavam malas, sacos de bolacha, açúcar, aparelhos de televisão —tudo o que não conseguiam encontrar facilmente na Síria em guerra. Pouca gente conseguia autorização para ir ao Iraque fazer compras. Cada viagem era preciosa.

O barqueiro recolheu nossos passaportes e ligou o motorzinho de popa. Em menos de dez minutos atravessamos o Tigre e estávamos em solo sírio, mais especificamente no posto de controle de fronteira na cidade de Derik, que se resumia a duas casas de lajota bege-claro, uma de frente para a outra, em estilo pseudoneoclássico.

Encostado em um Hyundai prata empoeirado com o para-brisa quebrado, Barzan fumava um cigarro e me esperava. Tinha um ar de galã latino. Dentro do carro, uma mulher bem branca e bem magra estava sentada no banco do passageiro. Ela acariciava um gatinho branco no colo, em cima de um jornal. Era Raushan. Entre os dois bancos, uma garrafa térmica com café e um fuzil Kalashnikov.

"Patrícia?", Barzan perguntou.

Respirei fundo.

Eu já tinha feito muitas reportagens em lugares difíceis. Estive no interior de Serra Leoa cobrindo a epidemia de vírus ebola em agosto de 2014. Fui conversar com mulheres que tinham fugido da escravidão sexual no norte do Iraque, em fevereiro de 2015. Escrevi sobre a guerra e os refugiados no Afeganistão, em 2009. Entrevistei mulheres vítimas de violência sexual na Índia, logo depois do caso brutal de estupro coletivo em um ônibus, em 2012.

Mas essa cobertura era diferente. Eu estava chegando a um país em guerra e depositando minha vida nas mãos de um desconhecido. Um amigo jornalista costumava brincar dizendo que, nessas coberturas, tudo o que pode dar errado vai dar errado. Dessa vez, até o que parecia estar certo deu errado.

Três dias antes de embarcar na Turquia rumo ao Iraque, de onde eu iria atravessar para a Síria, descobri que não poderia mais fazer a reportagem que tinha planejado.

GUIA

A pessoa que me ajudaria na Síria se ocupou com outro trabalho e não poderia mais me acompanhar. Perdi o chão. As matérias que eu havia proposto tinham ido por água abaixo. E o pior, fiquei sem "fixer".

O "fixer" é a figura mais importante de qualquer cobertura jornalística internacional. É uma pessoa local, que atua como tradutor, às vezes motorista, mas principalmente termômetro cultural. É uma pessoa que conhece a política do lugar, as pessoas, as motivações de cada um, e nos ajuda a entender o contexto de cada situação.

Normalmente, é um jornalista muito bem informado, que trabalha com repórteres estrangeiros para complementar sua renda. Sem ele, o jornalista estrangeiro não passa de um turista mal informado. Com um "fixer" mal-intencionado, em um país em guerra, você pode acabar mal.

Alguns jornalistas ocidentais sequestrados na Síria foram vendidos por seus "fixers" e motoristas a grupos terroristas ligados à Al-Qaeda ou ao Estado Islâmico. Os sequestradores pediam milhões de dólares em resgate aos governos dos países de origem das vítimas. Mas países como Estados Unidos e Reino Unido seguem o princípio de não negociar com terroristas, muito menos pagar. Segundo esses governos, o pagamento de resgates serviria de estímulo para mais sequestros.

O resultado é que muitos jornalistas e trabalhadores humanitários americanos e ingleses acabaram assassinados pelo EI. Steven Sotloff, jornalista americano que trabalhava para a revista americana "Time", foi sequestrado em agosto de 2013 em Aleppo, na Síria. Ele tinha muita experiência em coberturas na Síria e na Líbia, sempre se concentrando nos efeitos dos conflitos sobre as pessoas comuns.

Um jornalista sírio amigo de Sotloff acredita que ele foi vendido por um "fixer" ao EI por algumas centenas de dólares. Sotloff foi mantido em cativeiro por pouco mais de um ano. Em setembro de 2014, o EI divulgou em um vídeo a decapitação do jornalista.

O sol ardia na minha cabeça e eu pensava em Sotloff.

O INÍCIO

Foi uma foto que me levou à Síria. No dia 2 de setembro de 2015, a imagem de um menininho deitado de bruços numa praia, sem vida, com os braços ao longo do corpo e uma camiseta vermelha, chocou o mundo.

Alan Kurdi, de três anos, tinha morrido afogado tentando chegar à Grécia de bote com a sua família, que fugia da guerra e da pobreza na Síria. Sua mãe, Rehan, e o irmão Galib, de cinco anos, também morreram no mar. Antes dele, milhares de Alan Kurdis se afogaram enquanto tentavam chegar ao sonho europeu. Mas a mídia não deu atenção e nós não ficamos sabendo.

Daniel Roland/AFP
Grafite na Alemanha baseado na foto do menino Alan Kurdi, morto fugindo da guerra na Síria

O Brasil estava recebendo centenas de sírios e eu vinha cobrindo o tema. Todo dia havia reportagens sobre os horrores da guerra na Síria e o êxodo de refugiados. Mas confesso que precisei daquela imagem para finalmente acordar para a real dimensão do problema dos refugiados. Alan tinha apenas três anos, a mesma idade de meu filho Manuel.

O que leva um pai e uma mãe a enfiar seus filhos pequenos dentro de um bote, sabendo que há grandes riscos de a família toda morrer afogada? Muitos chegam a embarcar sem salva-vidas, ou com coletes fajutos.

Na Turquia, existiam fábricas que produziam coletes recheados de papelão. Dentro da água, eles ficavam pesados e afundavam, em vez de flutuar. De que tipo de inferno fogem essas pessoas? Queria compreender ao menos em parte suas aflições.

A viagem começou pela Turquia. Há quase 3 milhões de refugiados sírios no país, embora as estimativas oficiais sejam um pouco mais baixas. Alguns poucos conseguem encontrar empregos decentes. Muitos pedem dinheiro na rua. Outros apertam-se em barracas dentro de campos de refugiados.

Na cidade de Izmir —mais conhecida por ficar perto das ruínas da antiga cidade grega de Éfeso e da casa onde teria vivido a Virgem Maria, conhecidos pontos turísticos da Turquia— há dezenas de milhares de refugiados apinhados em casas decrépitas. Muitos não conseguem nem matricular seus filhos nas escolas ou usar o hospital público.

Diante dessa falta de condições mínimas, muitos sírios que chegam à Turquia pensando em se fixar por lá acabam se arriscando na perigosa jornada para a Europa.

Izmir é o centro do tráfico de refugiados para a Grécia. As famílias vêm da Síria, do Iraque e do Afeganistão. Grande parte delas vive em pensões ou em hotéis baratos, onde o passam os dias juntando dinheiro para pagar aos traficantes de pessoas que controlam a travessia para a Europa.

A ESPERA

Quando estive no Hekimoglu, um hotel no bairro de Basmane, nenhum dos quartos estava livre. Fazia quatro anos que o hotel estava lotado de refugiados que se preparavam para embarcar.

Os quartos abrigam até dez pessoas —cada uma paga 15 liras turcas (cinco dólares) por noite. Esperavam um dia, duas semanas, um mês, o tempo que fosse preciso, por um bote que as levasse à Europa.

Em um desses quartos, encontrei uma família de oito pessoas. Estavam no hotel havia mais de uma semana. Eram iraquianos que tinham escapado de um massacre do EI no norte do país. Escondidos, sobreviveram comendo folhas de árvores durante dias.

Com ajuda de parentes que já estavam na Europa, o agricultor Wahid Sidi já tinha juntado quase todo o dinheiro necessário para levar à Grécia a família toda: sua mulher e mais seis filhos, entre um e 15 anos.

Os coiotes estavam cobrando 3.000 dólares para transportá-los. "Prefiro morrer no mar a morrer com o EI", ele me disse, enquanto seu vizinho de quarto mostrava no celular uma foto do primo que morrera afogado.

A família não tinha dinheiro para comprar coletes salva-vidas. No centro da cidade, os coletes eram vendidos por 70 liras turcas (25 dólares) o infantil e cem liras turcas (35 dólares) o adulto.

As lojas faziam questão de dar grande visibilidade a seu campeão de vendas. Havia inúmeros manequins de crianças com coletes em exposição na calçada para atrair compradores.

À noite, os traficantes ficavam na frente de uma mesquita no bairro de Basmane e saíam com famílias carregando suas roupas e pertences em sacos plásticos pretos. A maioria dos traficantes era de sírios como os refugiados e ganhava comissão sobre o número de pessoas que eles conseguiam arrebanhar para a travessia. Já os donos dos botes e dos pontos de tráfico de pessoas eram turcos.

Lua de Mel Em Kobane
Patricia Campos Mello
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Os refugiados levavam o dinheiro e os celulares dentro de bexigas, que amarravam no braço, para não correr o risco de molhar seus únicos bens durante a travessia.

De Izmir, eles eram transportados em vans até cidades na costa como Ayvalik, Bodrum e Cesme, de onde pegavam os botes de borracha que acomodavam até 40 pessoas. Com sorte, chegavam até ilhas gregas como Lesbos, Kos e Samos.

Esse era o trajeto que Alan Kurdi teria feito.

PATRÍCIA CAMPOS MELLO, 42, é repórter especial e colunista da Folha. Escreveu também "Índia - da Miséria à Potência" (Planeta).


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