Folha de S. Paulo


Coronel volta para Moscou quase cem anos após seu avô fugir da guerra civil

Eu vejo a vida como um círculo, e estou completando o meu e o da minha família. Nós fomos expulsos da Rússia pela revolução, nos reorganizamos no Ocidente e agora estou de volta a Moscou.

Meu sobrenome é um dos mais antigos da Rússia, há dois santos ortodoxos chamados Mikulinski, do século 12.

Meu bisavô se chamava Alexander Sergeiévitch Mikulinski. Ele nasceu em 1863 perto de Moscou, fez carreira no Exército Imperial e, em 1914, chegou a ser dado como morto durante uma batalha contra os alemães.

Na realidade, ele estava vivo. Acabou condecorado pela grã-duquesa Maria Pavlona em 1915, sendo promovido a major-general.

Ele morreu logo depois, em algum momento de 1916, mas ninguém sabe exatamente a data. O corpo do meu bisavô nunca foi encontrado.

O filho dele, meu avô Mikhail Alexandrovitch, nascido em 1887, fez carreira nos serviços postais imperiais, lotado na região do Cáucaso.

Vovô também lutou na Primeira Guerra Mundial, como tenente. Ele era muito nacionalista e, com a revolução, uniu-se ao Exército Branco contra os bolcheviques.

Em 1920, ele foi encurralado, perdeu tudo e fugiu para o Ocidente. Escapou para a Bulgária, onde meu pai, Boris, nasceu em 1923 na cidade de Gorna Oriahovitsa. Depois eles se mudaram para a Bélgica, onde a família cresceu. Eram cinco filhos.

Ele se estabeleceu com a ajuda da comunidade russa local, mas as condições financeiras não eram tão boas quanto na Rússia.

Era muito comum você ver nobres com pequenos negócios no comércio. Acabaram indo para Paris, cidade que concentrava boa parte dos expatriados da revolução, e manteve sua vida numa ponte entre a França e a Bélgica.

Meu pai casou-se com uma francesa de origem russa, Maria Nirkova, em 1950. Ela tinha 19 anos, 12 a menos que ele, que era arquiteto.

PRIMEIROS PASSOS

Eu nasci em Ixelles, subúrbio de Bruxelas, em 1959. Meu pai morreu no ano seguinte, então não tive contato com ele. Na minha infância tinha meu avô Mikhail Alexandrovitch, que morreu em 1969.

Em casa, todos falavam russo antes do francês. E havia a Igreja Ortodoxa como centro de nossa vida social. Eu vejo a religião como uma espécie de guardiã da memória coletiva do povo russo.

Havia um grande desprezo pelos comunistas nas conversas em casa, mas, curiosamente, ninguém fazia discursos contra a União Soviética.

Na escola, eu sofria uma forma de bullying, todo mundo achava que eu era comunista. Na verdade, eu só era o mais pobre de toda a turma.

Decidi estudar direito na Universidade Paris-Descartes, mas foi um desastre. Estudei línguas.

Inspirado por tantas histórias militares da família, decidi tardiamente me alistar no Exército francês, aos 21 anos. Minha mãe e meus avós maternos, que ainda estavam vivos, ficaram horrorizados, porque o Exército francês era considerado inferior pela derrota que sofreu dos nazistas.

Em 1981, na artilharia, fui enviado para a Alemanha Ocidental, que era a linha de frente da Guerra Fria.

Fiquei estacionado até 1986 em Berlim Ocidental, no setor francês. A partir de 1987, passei a ser intérprete dos encontros entre oficiais ocidentais e soviéticos.

Era uma situação estranha. Percebi que, por muito tempo, havia temor, por parte de meus superiores, de que eu tivesse inclinação pró-soviética, dado meu passado russo. O que eu tinha, na verdade, era uma curiosidade sobre a Rússia, e sempre foi assim.

Em 1976, eu havia conseguido vaga num programa de intercâmbio escolar e passei alguns dias em Moscou. Aquilo era tão diferente de tudo o que eu já havia visto, a escala dos prédios, a ritualização da vida cotidiana, que fiquei impressionado. Mas nunca gostei do comunismo.

Revolução Russa, 100

CARREIRA

Eu formei minha família nas folgas do Exército. Minha filha mais velha, Alexandra, nasceu em 1987, na França. A caçula, Elisabeth, veio quatro anos depois, na Suíça.

Em 1989, o muro de Berlim caiu, mudando toda a vida na Europa. Quando a União Soviética enfim desapareceu, eu fui destacado para integrar a equipe francesa que faria a certificação de uma série de acordos de desarmamento.

Fui parar em São Petersburgo e Nijni-Novgorod em 1992. Num primeiro momento, nossas ordens eram também para dar apoio ao governo de Boris Ieltsin caso houvesse revolta dos comunistas.

Novamente, os ciclos da vida se fizeram evidentes: iria lutar a mesma guerra que meu avô lutou.

Felizmente, não foi preciso, e eu aprofundei meu contato com a realidade russa, que era terrível, dura.

Fiz trabalhos semelhantes em outros países do antigo bloco comunista: Hungria, Polônia e Romênia.

Cheguei ao posto de coronel. De 2000 a 2006, trabalhei como conselheiro militar no Ministério das Relações Exteriores da França.

Em 2006, fui indicado para ser o adido de defesa da embaixada da França em Sófia, na Bulgária, outro egresso do Pacto de Varsóvia. Fiquei lá três anos, quando voltei para o setor de operações especiais do Estado-Maior do Exército francês.

Trabalhei lá até 2014, focando em preparar tropas para ações em lugares como Burkina Faso, Mauritânia e Mali. Como se sabe, há um problema sério com terrorismo islâmico naquela região.

Isso abriu portas para contatos com empresários do ramo de segurança. Deixei o Exército naquele ano para tentar montar meu negócio.

Abri uma empresa de consultoria de crises e tentei representar um fabricante de armas búlgaro, mas não deu certo. Busquei então contatos na Rússia, sem sucesso.

Revolução Russa, 100: análises

O RETORNO

Estava ficando apreensivo com meu futuro, mais por mim e por minha mulher, Maria. Minhas filhas estavam encaminhadas. Alexandra iniciou o retorno da família Mikulinski à Rússia em 2010, quando ela casou com um promissor pintor de ícones ortodoxos, Mikhail Agafonov.

Ele é russo, e ela é uma especialistas em ícones. Acabaram se mudando para Moscou, sendo os primeiros Mikulinski a morar na pátria-mãe desde a revolução. Minha outra filha é osteopata e permanece na Suíça.

De certa forma, a própria profissão de Alexandra, que hoje tem três filhos e faz questão de manter as tradições familiares vivas, é um reflexo da perenidade do sentimento russo em nossa família.

Certo dia de 2016, estava em Moscou e encontrei amigos. Um deles falou: "Por que você não consulta uma cartomante? Conheço uma georgiana excelente".

Caí na risada. É verdade que as artes divinatórias são famosas na Rússia, apesar de toda a religiosidade ortodoxa. Minha avó, Anastasia, jogava cartas para os vizinhos. Pensei bem: "E por que não?".

Fui à cartomante. Ela inicialmente me deu uma espécie de passe, depois colocou umas cartas à mesa e começou a descrever com impressionante precisão a natureza dos meus problemas pessoais e profissionais.

Ela me disse que eu morreria se continuasse insistindo em fazer negócios com armas ou fosse morar na África –hipótese que de fato eu contemplava. E completou: "Não se preocupe, você terá um novo emprego na Rússia".

Qual não foi minha surpresa quando, em 23 de dezembro de 2016, eu recebi um telefonema da LafargeHolcim, a maior empresa de cimento e materiais de construção civil do mundo.

Disse que sim e, em 9 de janeiro deste ano, fui contratado como o responsável pela área de segurança da Europa oriental, baseado na Moscou de meus antepassados.

A cartomante estava, afinal de contas, certa. O círculo está finalmente fechado.

Revolução Russa, 100: mais

*

1920
Foi o ano em que o avô de Vladimir Mikulinski, um oficial do Exército czarista, escapou com a família de Moscou durante a guerra civil russa, que matou 10 milhões

1992
Já coronel do Exército francês, Mikulinski foi à Rússia pós-soviética para participar de verificação de desarmamento e encontrou um país destroçado

2016
Depois de dois anos de crises profissionais, Mikulinski recebe proposta para mudar a Moscou como chefe de segurança da Europa oriental de uma multinacional


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