Folha de S. Paulo


Análise

Expansão comunista criou pontos de atrito para Rússia pós-soviética

Cem anos depois, um dos legados perenes da Revolução Russa se encontra no arranjo geopolítico da Eurásia. Processos consolidados no tempo do comunismo (1917-1991) hoje se apresentam como linhas de atrito para a Rússia pós-soviética.

A observação de um mapa facilita as coisas. Do ponto de vista estratégico, a Rússia historicamente se viu asfixiada: a grande linha transversal que vai de São Petersburgo ao Cáucaso indica uma nação com acesso restrito ao mar ocidental e aos mercados da Europa, aberta à invasão estrangeira por terra.

A resultante, durante o Império Russo, foi a expansão até porções da Polônia, engolindo os Estados bálticos. Ao tomar o poder em 1917, os bolcheviques meramente absorveram o padrão existente.

Com uma vantagem: a conquista a leste, das regiões tribais da Ásia Central, só foi encerrada pelo czarismo no fim do século 19, levando os comunistas a criar um sistema de poder original por ali –Estados nasceram do zero.

"Foi desastroso, como se sabe, mas funcionou por 70 anos. Agora as fronteiras todas recuaram, acuando Moscou", diz o historiador Mikhail Makienko, russo de origem ucraniana que trabalha como consultor de empresas.

DESAGREGAÇÃO

Revolução Russa, 100: mais

Com a desagregação soviética em 1991, essa miríade de 14 Estados associados à Rússia tentou a vida sozinha. Vladimir Putin procurou reativar uma certa União Eurasiana, sem efeito prático até agora, mas efetivamente os países da Ásia Central e a Belarus estão atados a Moscou.

"O mesmo não se observou em outros lugares, como a guerra de 2008 na Geórgia e a de 2014 na Ucrânia provam", lembra Makienko.

Ele se refere a dois pontos centrais da narrativa putinista da história pós-soviética.

Em 2008, Moscou, segundo sua versão, revidou a um ataque georgiano a posições russas no encrave da Ossétia do Sul, levando a uma curta guerra na qual Putin levou a melhor. De acordo com Tbilisi, suas forças foram provocadas. A verdade certamente está no meio do caminho.

Em 2014, o golpe que derrubou o governo pró-Moscou na Ucrânia levou a uma contraofensiva do Kremlin. A Crimeia foi anexada após a intervenção não oficial de forças russas e a realização de um plebiscito não reconhecido internacionalmente. Mais de três anos depois, a guerra civil segue congelada na região leste do país.

A preocupação estratégica de Putin é clara e difere pouco daquela dos czares ou de secretários-gerais do Partido Comunista: a Otan (aliança militar ocidental) expandiu-se ao leste –suas tentativas de cooptar Kiev e Tbilisi foram rechaçadas à força.

O historiador ucraniano Serhii Plokhii, da Universidade Harvard, aponta para a origem do atrito, lembrando que seu país surgiu como república associada à Rússia comunista antes da formação da União Soviética em 1922, mas buscando autonomia.

"O gênio do nacionalismo já estava fora da lâmpada antes, nos estertores do czarismo", sustenta Plokhii, autor de "O Último Império" (Leya, 2015), estudo da causa mortis da União Soviética.

Isso levou ao processo tumultuado de relação entre o poder central e as periferias do império socialista.

A reabsorção da península da Crimeia por Putin em 2014 fala tanto sobre suas preocupações com a Otan quanto sobre o que o russo médio considera reparação histórica: a região de maioria pró-Moscou havia sido entregue pelo secretário-geral Nikita Krushchev a Kiev em 1954 como um presente para seus compatriotas.

Putin busca reduzir a importância de toda essa herança. Em 2013, no clube de discussões Valdai, afirmou que "a Rússia deixou a ideologia soviética para trás e está voltando para sua própria história", ponderando que seria necessário evitar "idealizar a Rússia pré-1917".

Para o historiador Nikita Sokolov, Putin tenta reescrever os fatos à luz da conveniência. O presidente só vê "um conjunto de respostas que ele considera corretas para a história", diz Sokolov, um dos fundadores da Sociedade Histórica Independente e pesquisador do Centro Boris Ieltsin, em Moscou.

Revolução Russa, 100

PACTO COM HITLER

Um exemplo desse revisionismo foi uma observação de Putin sobre o pacto de não agressão entre a Alemanha nazista e a União Soviética em 1939, que incluía protocolos secretos determinando a divisão da Polônia e de esferas de influência na Europa oriental entre as ditaduras.

Se a Rússia condenou os protocolos em 2009, em 2012 Putin fez questão de lembrar durante um evento que a Polônia também ocupou partes da Tchecoslováquia quando os nazistas de Adolf Hitler tornaram o país um protetorado de Berlim, em 1938.

Hoje comandada por um governo hostil ao Kremlin, Varsóvia está na linha de frente da chamada nova Guerra Fria entre o Ocidente e Moscou. A reação da Polônia remonta aos tempos imperiais, quando fazia parte dos domínios do czar.

A dinastia Romanov expandiu seu controle sobre a Ásia e, na Europa, absorvia a Finlândia e a Polônia. Com a desagregação causada pela revolução, mais de 20 Estados se partiram, e os dois europeus ficaram independentes.

Nas décadas seguintes, um longo processo de fusões e aquisições territoriais resultou na União Soviética com 15 repúblicas –a anexação dos Estados Bálticos ocorreu na 2ª Guerra Mundial.

Isso evidencia o papel da guerra civil nas divisões da Rússia atual, e o da 2ª Guerra nas unificações. De revolução, Putin nem quer saber.

"Ele teme a menção ao tema pois teme uma revolução em sua terra, mas o fato é que a Rússia vive uma continuação do conflito entre os bolcheviques e os monarquistas", diz Orlando Figes, historiador britânico.


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