Folha de S. Paulo


Balé mais visto de todos os tempos, 'Lago dos Cisnes' une erudito e pop

RESUMO "O Lago dos Cisnes", balé mais visto de todos os tempos, contém um paradoxo: é uma obra erudita, mas mantém, desde o fim do século 19, atributos pop. Exibições em São Paulo, de 10 a 12 deste mês, tiveram ingressos esgotados em um dia. Enredo, dança, "mística" e até confusões do passado explicam o sucesso.

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"O Lago dos Cisnes" é a metonímia por excelência para o balé clássico. A imagem da bailarina quase etérea, a linha vertical de pernas e braços alongadíssimos dividida pelo saiote armado de Odete (o cisne branco), é o símbolo desse gênero no mundo da dança e no imaginário popular.

É quase um paradoxo: erudito que é, esse clássico mantém, desde o fim do século 19, atributos de uma obra pop. O balé mais visto de todos os tempos gera celebridades, inspira produções de outras linguagens artísticas e tem alto valor de mercado, com sucesso de público garantido.

A mais recente comprovação do fenômeno pop (e de vendas) está na curta temporada que a São Paulo Companhia de Dança apresentará com a Osesp na Sala São Paulo, de 10 a 12 deste mês. Os ingressos para as apresentações do segundo ato completo de "O Lago dos Cisnes", postos à venda em 5/10 por R$ 50, esgotaram-se em um dia.

Há 140 anos, porém, a primeiríssima apresentação do espetáculo, no teatro Bolshoi, em Moscou, fracassou diante da crítica. Somente a música, uma das três obras compostas por Tchaikovsky (1840-93) especificamente para balé, foi poupada de ataques e elogiada.

O público até se animou com os efeitos especiais (que, segundo jornais de 1877, não escondiam a fraqueza das danças), mas a coisa não vingou. Em cinco anos, as apresentações foram "descontinuadas", para usar um eufemismo recorrente no mercado cultural.

O cisne só renasceu —e começou a ganhar os contornos atuais— quando o segundo ato da coreografia foi remontado e apresentado em 1895 no teatro Mariinsky, em São Petersburgo, para uma noite de gala em homenagem a Tchaikovsky, morto dois anos antes.

A nova versão dessa parte do balé, um dos chamados "atos brancos" (cenas em que as mulheres-cisnes dançam na floresta, em oposição ao primeiro e ao terceiro ato, transcorridos na corte), foi feita por Lev Ivanov (1834-1901), assistente do "maître de ballet" do teatro imperial de São Petersburgo, Marius Petipa (1818-1910).

Com o sucesso dessa apresentação e de uma seguinte, em outra noite de gala, Petipa resolveu remontar o "Lago" inteiro. Ele coreografou o primeiro e o terceiro ato; Ivanov, o segundo e o quarto –mas é o nome de Petipa que aparece antes na montagem.

PRECURSOR

A maioria das remontagens feitas pelas grandes e médias companhias de dança no mundo todo é a do segundo ato, entendido como um balé completo.

"A essência da obra está condensada nessa parte", afirma Inês Bogéa, diretora artística da São Paulo Companhia de Dança.

Dessa condensação resulta um espetáculo mais curto, algo mais palatável para o público contemporâneo. Além disso, no primeiro e no terceiro ato, as cenas na corte, com mais pantomima, "divertissements" e linguagem típica do século 19, podem fazer menos sentido hoje em dia.

O segundo ato, por sua vez, abre para a dança possibilidades menos datadas, que acabariam sendo desenvolvidas no século 20.

"Muitos consideram Ivanov o precursor do balé moderno, ou neoclássico. Nas cenas do lago, o corpo de baile deixa de ser um 'cenário' para os bailarinos principais, passando a funcionar como um coro que comenta e responde aos movimentos dos protagonistas. Ele também trabalha com a ideia de deixar a estrutura da dança e a da música completamente amalgamadas, o que posteriormente gerou o balé sem narrativa específica", diz Bogéa.

O gestual dos cisnes permite ao público entender o que está acontecendo em cena, como nos bons balés narrativos, mas a beleza dos movimentos de certa forma se basta, estimulando a vivência do sublime que escapa a interpretações.

"Apesar de ser um balé narrativo, o 'Lago' tem momentos marcantes de balé abstrato. A imagem de uma bailarina quase flutuando, um corpo que não é totalmente carnal, abre espaço para muitos sentidos poéticos além da historinha", diz Valéria Cano Bravi, coordenadora do curso de dança da faculdade Anhembi-Morumbi.

A versão concisa do espetáculo teve ainda outra vantagem: facilitou o deslocamento global da companhia, pois demandava menos cenários, figurinos e bailarinos. Assim, a montagem tornou-se um produto de exportação da Rússia no início do século 20.

MITOLOGIA

Na mesma época, a elaboração de um solo de quatro minutos contribuiu para fomentar a mitologia de "O Lago dos Cisnes e aumentar o interesse internacional pela obra. Trata-se de "A Morte do Cisne", coreografia criada por Michel Fokine (1880-1942) para Anna Pavlova (1881-1931), com música de Camille Saint-Saëns (1835-1921).

Boa parte do público que lota as exibições de "O Lago dos Cisnes" no mundo todo espera (em vão) assistir à interpretação de "A Morte do Cisne", embora este seja um solo totalmente desvinculado da peça com música de Tchaikovsky. Até estudantes de balé e amantes da dança fazem a confusão, imaginando que a coreografia de Fokine seja o final trágico do cisne branco.

A "Morte do Cisne" viajou o mundo e se beneficiou de novas tecnologias do século 20. Pôde ser registrada em filmes, e as imagens de Pavlova e suas sucessoras no Balé Mariinsky estão entre os primeiros "virais" da dança.

Para Thereza Rocha, pesquisadora e professora da graduação em dança da Universidade Federal do Ceará, Pavlova integrou qualidades interpretativas e técnicas de uma bailarina em um centro de expressão do corpo que era novo para a época: a unidade superior, a articulação da coluna, dos braços e da cabeça.

O movimento de pés conhecido por qualquer iniciante de balé, o "pas de bourré", sugerindo um deslizar meio trêmulo da ave, é combinado com os braços que ondulam como asas ou se alongam como o pescoço do cisne e as costas que se dobram em cambrés extremos (arqueamento do tronco a partir da linha da cintura).

Essas movimentações fazem parte das interpretações modernas de "O Lago dos Cisnes", então o público pode não ver o solo "A Morte do Cisne", mas se deleita em reconhecer uma parte gestual imortalizada por Anna Pavlova e, mais tarde, por Maya Plisetskaia (1925-2015), que nos anos 1960 dançava no Balé Bolshoi com o título honorífico de "primeira bailarina absoluta".

Como não há registros precisos dos movimentos usados nas primeiras montagens do "Lago", no século 19, não é possível afirmar com certeza quem influenciou quem. O que se sabe é que o solo de Fokine e os atos de Ivanov se alimentam mutuamente.

"É como se 'A Morte do Cisne' fosse um 'single' de um álbum inteiro, 'O Lago'", brinca Rocha.

ENREDO

O pacote completo do sucesso desse balé também inclui o que não é dançado. Mesmo a apresentação de um só ato tem como pressuposto a história toda, o enredo fundamental do libreto escrito por Vladimir Begichev (1828-91), diretor dos teatros imperiais de Moscou quando a primeira versão foi produzida e montada.

Algo que distingue a tragédia amorosa de "O Lago dos Cisnes" é o caráter de Odete, heroína que não é mulher nem animal, "um ser totalmente mágico, criatura da imaginação", como escreve George Balanchine (1904-1983) no livro "101 Histórias dos Grandes Balés".

A protagonista mulher-animal remete a contos de fada e mitos espalhados por diversos países, e a identificação do público com seu drama é quase imediata.

A história central é até manjada: o príncipe, obrigado a se casar em nome de interesses do reino, encontra seu verdadeiro amor, e só o verdadeiro amor pode libertar Odete, transformada em ave pelo feiticeiro Rothbart. Esse tipo de trama, no entanto, continua mobilizando as pessoas.

"O conflito entre o amor intermediado (casar por obrigação) e o amor direto (casar por vontade própria) é da modernidade. Na pós-modernidade, que eu chamo 'Terra 2', onde vivemos hoje, não há padrão fixo, não se acredita nessa obrigação, mas é um drama que ainda fascina multidões —haja vista a história da princesa Diana", diz o psicanalista Jorge Forbes.

Ele aponta ainda outro aspecto contemporâneo: "O drama do príncipe é ter de fazer uma aposta: Odete é um animal, ele tem que dizer 'eu te amo para sempre' para essa coisa esquisita. É a aposta que as pessoas fazem até hoje. Quando alguém de 21 anos, como o príncipe do balé, quer casar, tem que bancar ficar com outra pessoa apostando no que vê e no que não vê".

O público também faz essa aposta: ama o cisne e se comove com seu destino por antecipação, que nem sempre é trágico. O final de "O Lago dos Cisnes" muda de acordo com a montagem, a cultura, a época ou o país, variando do suicídio dos protagonistas à vitória dos amantes, reunidos neste ou no outro mundo.

O que também não é visto, mas perpassa todo o espetáculo, é a presença/ausência da mãe, um clássico da psicanálise. Pode parecer clichê, mas é suficiente para tornar uma obra atemporal. "Pelo menos enquanto houver mães no mundo", brinca Claudia Arbex, psicanalista e ex-bailarina.

O lago da história é formado pelas lágrimas da mãe de Odete, vertidas após a filha ser enfeitiçada. A mãe do príncipe é quem o obriga a sair da infância para a vida adulta, escolhendo uma noiva entre as pretendentes da corte.

"A relação simbiótica com a mãe é muito presente, os protagonistas se afogam nela, como um Almodóvar querendo voltar ao útero no filme 'Tudo sobre Minha Mãe'", diz Arbex.

Para Jorge Forbes, o espetáculo "é universal e atemporal porque dá chance às pessoas de contarem a sua própria história, é aberto o suficiente para cada um se ver na obra. O que define um clássico é que não somos nós que o interpretamos, é a obra que nos interpreta".

IARA BIDERMAN, 56, é jornalista.


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