Folha de S. Paulo


Radicada em Londres, autora carioca escolhe o inglês como idioma literário

Guilherme Heurich
Luiza Sauma, escritora carioca radicada no Reino Unido

RESUMO Nascida no Rio e radicada em Londres desde os quatro anos, Luiza Sauma publicou em fevereiro seu romance de estreia, que foi bem acolhido pela crítica britânica. Escrito em inglês (sem previsão de lançamento em português), o livro explora temas muito brasileiros. Como decidir se ela é autora do Brasil ou da Inglaterra?

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Não é preciso avançar mais do que alguns capítulos no romance de estreia de Luiza Sauma, 35, para encontrar a frase que define a um só tempo as jornadas do protagonista do livro e da própria autora: "Até onde é preciso recuar no passado para encontrar as próprias origens?", pergunta-se o personagem ainda nas primeiras páginas.

Nascida no Rio de Janeiro, Sauma chegou a Londres em 1986 numa mudança provisória com a família, mas jamais retornou ao Brasil. Autora bilíngue de uma nova geração em que se destacam nomes como Julián Fuks (de família argentina) e Carola Saavedra (originária do Chile), a carioca é caso único em que a opção de idioma literário não foi o português.

Seu livro "Flesh and Bone and Water" (carne e osso e água) saiu em fevereiro pela Penguin britânica, em inglês. Bem acolhido em resenhas na Inglaterra e recomendado pela revista americana "The New Yorker", já teve traduções para o alemão, o holandês e o sueco. Até o momento, porém, não há previsão de lançamento no Brasil.

No romance, Sauma conta a história de André Cabral, um médico brasileiro de meia-idade que, assim como ela, vive em Londres.

A rotina tranquila que André leva com a mulher inglesa e as duas filhas adolescentes será desestabilizada por cartas que passa a receber de uma importante personagem de seu passado: Luana, empregada doméstica acolhida na casa dos Cabral "como se fosse filha" —na verdade, filha de Rita, espécie de criada da família.

Além dos segredos pregressos de André Cabral que movem a trama, o que o protagonista traz à tona ao mergulhar na memória para tentar responder à questão sobre suas origens é uma visão perspicaz, crítica, porém amorosa e até nostálgica do Brasil desde a redemocratização —esse ciclo histórico que agora parece se esgotar.

As nuances desse tempo social e político são captadas de uma perspectiva estrangeira, até por força do idioma em que o livro foi escrito. Isso, contudo, não impede a romancista de aplicar à narrativa uma segunda perspectiva: a de quem também conhece a cultura brasileira por dentro.

É o que faz de "Flesh..." um autêntico romance entre dois mundos, com um personagem brasileiro emigrado no centro do enredo, mas sem que os flashbacks a seu passado no Brasil —entre o Rio e a Amazônia, às vezes lembrando Milton Hatoum– soem artificiais, como aconteceria se saídos da pena de qualquer outro autor britânico.

Para começar, há a síntese dura e convincente de nosso patriarcalismo em Matheus Cabral, pai do protagonista. Deslocando-se do Pará ao Rio de Janeiro a fim de estudar, Matheus torna-se um bem-sucedido cirurgião plástico da elite local. Nele se fundem o retrato acabado do patrão e a figura do pai para formar um típico patriarca que conta com a cumplicidade de Rita.

VISÃO DE MUNDO

"O Brasil é um país muito patriarcal, e eu fui criada numa família típica brasileira." Sentada à mesa de um café em frente à British Library, em Londres, Luiza Sauma começa a explicação num português praticamente sem sotaque estrangeiro. Ela já havia avisado, no entanto, que passaria ao inglês quando precisasse construir um argumento mais complexo. É o que faz nos minutos seguintes da conversa.

"Achei que seria interessante tentar ver o mundo como um homem, especialmente um homem brasileiro: na alta classe média do Rio, um homem nunca lava as próprias roupas, ou faz faxina na casa, ou cozinha, e a mãe é geralmente obsessiva em relação a servi-lo. De certa forma, é um privilégio, mas também me parece assustador ter de viver assim, tão dependente de outras pessoas", comenta.

No caso de André Cabral, cuja mãe morreu num acidente, quem cumpre esse papel é Rita.

Sauma consegue contornar a expectativa por exotismo em obras que tratam do Brasil visto de fora, uma contingência que maneja com muita habilidade e ironia —do que dão prova as referências espertas às novelas brasileiras a que os personagens assistem, enquanto, na narrativa em flashback de André, sua história com Luana (o único dos segredos do protagonista que se vai revelar aqui) não por acaso toma o rumo do melodrama.

"Um escritor nascido aqui [na Inglaterra] tentando fazer esse livro seria ridículo", diz Sauma.

Se o André Cabral dos flashbacks à infância e à adolescência nasce dessa observação do privilégio masculino, o personagem adulto sempre tentando se adaptar à capital inglesa haveria de ter muito da própria escritora —e, claro, o elemento biográfico ajudou a formar o substrato mais profundo da experiência vivida pelo protagonista. A diferença, fundamental, é que a tentativa de integração da autora começou ainda criança.

Impressiona, em "Flesh...", a segurança com que Sauma articula a voz desse narrador em dois tempos que, contando a história em inglês (portanto numa língua estrangeira, mais estrangeira para ele do que para a própria romancista), emerge vivo da página como o brasileiro da alta classe média emigrado e ainda lutando para abandonar certos hábitos. Em particular, o de ser servido por essa espécie de casta inferior que são os empregados domésticos no Brasil.

Um dos recursos usados pela autora para tornar o narrador convincente é a invasão repentina do texto por uma certa palavrinha em português: empregada.

Como quando André, ainda relembrando Luana, diz: "Quem a visse de biquíni não saberia que era uma empregada. Ela até podia passar por uma das minhas amigas da escola: bem articulada, esbelta e bonita. Ainda que nenhuma das minhas amigas fosse negra". O estranhamento da palavra em português, aqui perdido na tradução, torna passagens como essa ainda mais desconfortáveis.

BRASILEIRO

"Flesh..." é também um romance profundamente brasileiro —e muito contemporâneo, ao mexer com relações de classe, gênero e raça no país desde os anos 1980. Mas ter escrito um livro como esse faz de Luiza Sauma uma escritora brasileira? Como decidir? Pela língua em que escreve, pelos temas de que trata?

Carola Saavedra, escritora bilíngue que nasceu no Chile, mudou-se para o Brasil aos três anos e depois viveu um longo período na Alemanha, diz que, caso decidisse escrever em espanhol ou em alemão, seriam experiências pontuais. "São idiomas que não me oferecem a aproximação (ao mistério da própria escrita) que o português me permite", afirma.

"Um brasileiro que escreve em inglês tem mais chances de ser lido, me parece. Mas isso não o livra desse lugar do 'exótico' —em geral um escritor não é apenas o que escreve, mas toda a sua história, e até sua aparência, que é lida (e vendida) pelo mercado, junto com o livro."

O colega de geração Julián Fuks, filho de pais argentinos, expressa opinião parecida: "Não sinto que a língua em que escrevo seja propriamente uma escolha. Ainda que possa escrever em espanhol, ainda que traduza os meus próprios textos ('A resistência' sai em breve na Argentina com tradução minha), sinto que o ato da escrita me exige o maior domínio possível sobre as palavras, a maior intimidade, o maior convívio".

PÓS-COLONIAL

Nas narrativas chamadas pós-coloniais, tipicamente se encena a história do imigrante a vagar por subúrbios de metrópoles que ama e odeia, como Londres, Paris ou Berlim. Estas, por sua vez, acolhem o imigrante, mas ao mesmo tempo o hostilizam, negando-lhe visibilidade e identidade: não é mais paquistanês ou indiano ou turco, mas não recebe o tratamento que um "autêntico" inglês, francês ou alemão mereceria.

Luiza Sauma, por ser uma imigrante escrevendo na língua de um desses ex-impérios em cujas metrópoles vingou a literatura moderna e sua principal linguagem, o romance, talvez seja o primeiro caso de autor brasileiro pós-colonial.

Ela, porém, afirma se considerar uma escritora britânica por ter sido educada, de forma mais ampla, na tradição literária de língua inglesa —ainda que o cânone estudado na escola e na universidade, lembra, lhe parecesse tão estrangeiro quanto também passaram a ser suas poucas referências brasileiras ao longo dos anos. (Não por acaso, cita como principais influências alguns dos nomes mais importantes da literatura pós-colonial: Ralph Ellison, Junot Díaz, Toni Morrison, Chimamanda Ngozi Adichie.)

Num e-mail enviado no dia seguinte à entrevista na British Library, a autora confessou: "Gostaria de poder dizer que sou uma escritora brasileira, mas me sentiria uma fraude, tendo lido tão pouca literatura do Brasil (preciso preencher essa lacuna). Mas também não parece muito certo dizer que sou uma escritora britânica".

Em seguida, agora em português, escreveu: "Sinto muita saudade. Mesmo quando estou no Brasil, eu sinto saudade porque eu sei que nunca mais vai ser o meu país" —aparentemente sem se dar conta de que, em "Flesh and Bone and Water", esse pertencimento salta aos olhos a cada página, e em grande estilo.

CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e na Universidade Cambridge, é jornalista e tradutor.


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