Folha de S. Paulo


Leia primeiras cenas de peça inédita de Silvia Gomez sobre estupro coletivo

SOBRE O TEXTO O trecho abaixo é parte dos experimentos de uma peça de teatro, ainda em processo de escrita, inspirada nas notícias sobre estupro coletivo de mulheres no Brasil.

*

PRÓLOGO

(Noite, asfalto. M porta uma arma e um rádio de comunicação, com o qual se distrai. J atravessa a cena e some, olhando para trás. Isso se repete até que ela entra, seguida por três homens sem rosto. Eles a violentam.)

M (para a plateia, paralelamente): Ah, não, mais uma. Sou invisível para eles, posso falar o que quiser aqui. Eu disse que não aguentava mais o km 23. Um a um, farão o que querem fazer. (Volta-se para os bastidores/coxia.) Dá para abaixar a luz? Essa parte é difícil, eu nunca me acostumo.

(A luz fica baixa.)

M (para a plateia): Eu estou cansada e sou invisível, pedi que me pusessem no setor administrativo, dormir carimbando papéis timbrados, parece asseado e inofensivo, eu pedi tanto, eu disse: "O km 23 daquela rodovia não, por favor, me mandem para qualquer outro lugar". Ninguém quer vir para cá, você perde tudo quando você vem para cá, não me julguem, você perde tudo o que há de quente ou bom dentro de você e você vai ficando invisível, começa pelos cabelos, os cabelos são os primeiros a ficar transparentes. "Por gentileza", eu disse, "o km 23 é um mundo louco".

(Socos, pontapés, chutes.)

M (para a plateia): Ok, vocês têm razão, eu posso impedir isto. Sim, existe bondade neste mundo, heróis ainda vivem e eu sou um tipo de fada, lenda brilhante ou história em quadrinhos. (Volta-se para os bastidores/coxia.) Por favor, me dê uma música, algo que inspire bons sentimentos, alguma coisa da Disney, por exemplo.

(Uma música mágica.)

M (para os bastidores): Obrigada. Agora um clarão, um clarão como o daqueles faróis no meio do oceano sobrevivendo há séculos a ondas gigantescas.

(Ela se posiciona com a arma, mirando os homens, de costas. Sol ofuscante.)

CENA 1

(Os homens foram embora. J está caída no chão.)

M: Ei. Ei. Está ouvindo? Estou falando.

J: Vá embora.

M: Ah, está!

J: Saia.

M: Consegue me ver?

J: Me deixe dormir.

M: Sabe me dizer o que aconteceu?

J: Dormir ou desaparecer.

M: Qual o seu nome?

J: Não importa, vá embora.

M: Eu posso ajudar.

J: O que você quer?

M: Quer ajuda para se levantar?

J: Não dá, não está vendo? Quem é você?

M: Lembra o que aconteceu?

J: Posso confiar em você?

M: Vamos, estou aqui.

J: Vamos para onde? Não posso confiar em você com esta roupa, não sei que dia é hoje. Você é homem ou mulher?

M: O que você acha?

J: Quanto tempo falta para irmos embora? Já cantaram parabéns? Nossa, acho que estou confusa.

M: Ah, começou o delírio.

J: Desculpe, não falo inglês, estou sem calcinha. Nossa, estou confusa, o que está acontecendo?

M: Você deve estar delirando, você perdeu sangue, posso ver de perto?

J: Não.

M: Pode ser a adrenalina, um tipo de pânico, lembra o que aconteceu?

J: Sim, estou bem, estou cantando parabéns, daqui a pouco me levanto, serei graciosa quando sair andando, obrigada, pode ir.

M: Não vai confiar em mim, não é?

J: Sim, claro que confio, agora pode ir.

M: Não confia não.

J: Sim, confio, vou te dizer o que aconteceu, quer dizer, eu me perdi nessa rua e tudo estava escuro e eu caí e quebrei o pé, eu acho. Ou a perna. Não tenho certeza, tudo bem? Agora pode ir, eu consigo resolver.

M: Não parece verdade.

J: Ou a perna inteira, talvez as duas, mais uma clavícula. Está tudo quebrado, mas dá para sair correndo mesmo sem clavículas, posso correr uma maratona quando amanhecer, está satisfeita? Pode ir agora.

M: Não parece verdade, querida.

J: Não me chame de querida. É falso.

M: Desculpe.

J: Quer dizer, eu costumo andar diretamente no asfalto, mas o asfalto, às vezes, você sabe, o asfalto pode ficar muito quente sob os seus pés e acho que foi isso que aconteceu e eu caí. Isso aí no seu cinto é uma arma? Olha, está tudo quebrado, mas eu estou ótima, pode ir, não conte para ninguém, não encoste em mim, estou imunda.

M: Não podemos continuar se você não me disser a verdade.

J: Você podia ver o asfalto derretendo sob seus pés, eu juro. Foi isso, um abraço. Me esqueça. Um beijo, querida.

M: Você me chamou de querida.

J: Desculpe, nunca chamo ninguém de querida, é falso, não sei o que está acontecendo.

M: Você está perdendo sangue perto da cabeça, dá para ver daqui, posso chegar perto?

J: Não! Foi o asfalto derretido, estava quente e eu caí, uma queimadura de oitavo grau. Até quantos graus vai a classificação de uma queimadura? Ah, não importa, foi uma queimadura de grau máximo, ok? Daqui a pouco eu me levanto e me viro sozinha, pode ir, um beijo, você não me viu aqui.

M: Não consegue imaginar alguma coisa verossímil?

J: O mundo queimando sob os seus pés. É verdade. Às vezes acontece. Eles disseram que iam voltar.

M: Não parece, mas eu quero te ajudar, é que não levo muito jeito. Eles disseram o quê?

J: Eu perdi o equilíbrio, foi isso, acho que bati a cabeça, meu cérebro está em chamas.

M: Não posso trabalhar com você desse jeito.

J: Você precisa acreditar em mim. Você disse trabalhar?

M: Não, nada.

J: O que você quer? Estou confusa, meu coração está batendo. Está difícil para mim, não está vendo?

M: Sim. É por isso que estou aqui.

J: Vá embora. Você está me enchendo. Ou você acha que pode me ajudar, que é um tipo de heroína ou a mãe da Peppa Pig ou uma cantora famosa, não sei, vá embora se você for da polícia.

M: O que é Peppa Pig?

J: Ah, me deixe dormir ou desaparecer. Eles disseram que iam voltar, voltar com um monte deles e acabar com você também e depois tudo começou a brilhar. Você, por exemplo, você brilha um pouco.

M: Você não para de falar. Posso checar o seu pulso?

J: Disseram que iam trazer outros com eles, você tem uma coisa cintilante, outros caras, alguma coisa acetinada na sua pele, não sei, na sua roupa macia e lustrosa como cetim, talvez seja o seu cabelo, um cabelo lustroso como um abajur ou como um monte de caras chegando a qualquer momento, que tipo de coisa é você, hein? A noite está brilhante e acetinada, quem você acha que é?
(Ela grita.)
Quem você pensa que é?
Você acha que é um tipo de fada?
Vá embora.
Você é velha ou nova?
Sua vaca velha.
Sua fada cintilante jovem.
Sua fada vaca cintilante macia e lustrosa como cetim transparente, você sabe o que é perder tudo?
Ah, que confuso, me deixe desaparecer, por favor.

(M vai até ela e tenta acalmá-la, abraça-a.)

M: Shh... Calma. Tente ficar quieta. Vai ficar tudo bem.

J: Não tem mais como ficar tudo bem.

M: Shh. Eu sei que você está com medo nesta noite brilhante, neste mundo louco, mas eu não vou sair daqui. Eu vou atravessar esta noite com você. Mas você precisa me dizer. Me dizer o que aconteceu.

*

SILVIA GOMEZ, 40, é jornalista e dramaturga.

ADRIANA KOMURA, 34, é diretora de arte e ilustradora do Cratera Estúdio.

Adriana Komura
Ilustração de Adriana Komura

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