Folha de S. Paulo


Cem anos após Duchamp, debate sobre os limites da arte ainda gera polêmica

RESUMO Autor argumenta que influência do artista Marcel Duchamp se estende até hoje, cem anos depois da controversa apresentação de "Fonte". A obra, um mictório assinado, inaugurou o chamado ready-made. Outros trabalhos do francês envolveram questões de gênero e o nu, que voltaram a causar polêmica nas artes.

*

Pode alguém fazer obras que não sejam obras de arte?
MARCEL DUCHAMP

Há exatos cem anos, em 1917, o francês Marcel Duchamp (1887-1968) apresentou para o Salão dos Artistas Independentes de Nova York um objeto intitulado "Fountain" ("Fonte"). Para participar do evento, era necessário levar o trabalho e pagar uma taxa de US$ 6, pré-requisitos cumpridos pelo artista, que inscreveu a obra sob o pseudônimo de R. Mutt.

"Fonte", no entanto, não foi aceita. Material e visualmente, a peça não se diferenciava de um objeto comum. Tratava-se apenas de um mictório invertido, assinado e datado na borda. A pergunta surgiu de imediato: será isso arte?

A resposta, naquele momento: "não". Enquanto pinturas, esculturas e mesmo as recém-criadas fotografias eram facilmente digeridas pelo público e pelo próprio circuito artístico, o urinol de Duchamp causou indigestão.

Como em outros períodos da história, inclusive no presente, a proposta inovadora e questionadora do "status quo" vigente na arte, não sendo bem recebida nem compreendida, provocou perplexidade, dúvidas e indignação.

O gesto criou uma fissura e abriu um portal de liberdade criativa para os artistas vindouros, que, adotando a ação duchampiana como referência, puderam se livrar de séculos de dominação de obras retinianas (atreladas à visão) e olfativas –termo utilizado por Duchamp para aludir ao forte odor de terebintina das pinturas a óleo predominantes no período.

Foi uma ruptura com uma concepção que valorizava apenas a técnica e reconhecia como artistas somente aqueles que eram tidos como bons pintores e escultores.

Duchamp definiu "Fonte" como um ready-made, que, traduzido literalmente, significa "já feito, pronto, produzido, manufaturado". O novo conceito punha em xeque não só a forma e o conteúdo artísticos convencionais mas também a noção de autoria, inserindo ainda o público no processo artístico, que somente se completaria com a interpretação do espectador.

Com o ready-made, Duchamp levou a novo patamar as controvérsias que já vinha alimentando. Em 1913, por exemplo, dois anos antes de o artista migrar de Paris para Nova York, o célebre "Nu Descendo a Escada" obteve grande destaque e provocou enorme agitação ao ser exposto nos EUA.

EVOLUÇÃO DA ARTE

"Nu Descendo a Escada" ainda dialogava com o cubismo, movimento notabilizado sobretudo pelo espanhol Pablo Picasso (1881-1973) e que integra a espécie de linha da evolução artística traçada pelo americano Clement Greenberg (1909-94).

Para ele, é possível identificar um percurso que vai do Renascimento (fins do século 14 a fins do 16), quando o conceito de arte estava atrelado ao belo e à busca pela reprodução fidedigna da realidade, ao expressionismo abstrato do americano Jackson Pollock (1912-56), cujos quadros se afastavam de qualquer noção figurativa.

Segundo Greenberg, a passagem das características miméticas na pintura para as caraterísticas não miméticas começou com o modernismo, conjunto de tendências artísticas inaugurado pelo impressionismo do francês Édouard Manet (1832-83) e que englobou, entre outras correntes, o cubismo, o concretismo e o abstracionismo.

Duchamp, porém, seguiu outro caminho: investigou a linguagem da arte e, já no começo de sua promissora trajetória de pintor, dizia-se cansado do cheiro de terebintina e do ato de pintar. Para ele, a arte deveria estar a serviço da mente, estimulando reflexões por parte do público, e não se reduzir a um deleite visual.

Parece consequência natural de suas propostas que Duchamp não tenha se enquadrado em nenhuma tendência específica, apesar de sua aproximação posterior com ideias dadaístas e surrealistas –movimentos que estavam fora da linha evolutiva de Greenberg.

De fato, Duchamp estava fora de qualquer curva. Com sua inovação, ele ampliou o entendimento de arte além das questões postas por Greenberg, incorporando conceitos hoje recorrentes e fundamentais para a compreensão da produção artística. Apropriação, deslocamento, humor, questionamento da autoria e (inter)participação do público são algumas das chaves introduzidas pelo ready-made.

Ao se apropriar de um urinol —proveniente da indústria e produzido em larga escala— e deslocá-lo de sua função natural, o francês desafiou a concepção de originalidade e unicidade do objeto artístico e transferiu uma etapa de sua elaboração para o campo mental.

Nas palavras de Duchamp, "o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, dessa forma, acrescenta sua contribuição ao ato". Ou seja, o artista opera como propositor de ideias, e os trabalhos se completam com a percepção do espectador.

RESSONÂNCIA

Apesar do frisson que Duchamp causou nas primeiras décadas do século 20, sua chegada ao ideário artístico global ficou evidente somente nos anos 1950 e 1960, quando aconteceu o que intitulo uma "ressonância mórfica duchampiana" nas artes.

Aqui, em consonância com o processo de apropriação e deslocamento, aproveito livremente esse conceito científico e o aplico à argumentação. A ressonância mórfica, ou "lenda do centésimo macaco", é uma teoria difundida pelo biólogo inglês Rupert Sheldrake.

Ele imagina duas ilhas habitadas pela mesma espécie de macaco, sem contato perceptível entre elas. Um símio de uma das ilhas descobre um jeito mais eficaz de quebrar cocos. Por imitação, o procedimento se difunde. Quando o centésimo macaco aprende a técnica, os símios da outra ilha começam a quebrar cocos da mesma maneira e de forma espontânea, a tal ponto que o conhecimento parece incorporado aos hábitos da espécie.

A partir dessa imagem fictícia, Sheldrake sugere a existência de campos mórficos, ou seja, estruturas que se estendem no espaço-tempo e moldam o comportamento de todos os sistemas do mundo material, de modo que, por meio da "ressonância mórfica", a informação é coletivizada.

Algo como uma ressonância mórfica duchampiana pôde ser percebida em diferentes países, mais ou menos em um mesmo período –guardadas as particularidades de cada local. Pode-se afirmar que o legado de Duchamp está diretamente conectado com o surgimento da pop art na Inglaterra e nos EUA, do novo realismo na França, da arte povera na Itália, das ações do grupo japonês Gutai, do alemão Joseph Beuys e de artistas na América Latina, incluindo brasileiros.

Nesse âmbito, destaca-se, no cenário nacional, o trabalho dos artistas neoconcretos do Rio de Janeiro, capitaneados por Hélio Oiticica (1937-80), Lygia Clark (1920-88) e Lygia Pape (1927-2004); de dois membros do grupo Rex de São Paulo, Wesley Duke Lee (1931-2010) e Nelson Leirner (1932-); e as séries "Popcretos", de Waldemar Cordeiro (1925-73) e Augusto de Campos (1931-), exibidas na galeria Atrium, na capital paulista, em 1964 –mesmo ano em que Andy Warhol (1928-87) apresentou na Stable Gallery, em Nova York, a mostra "Brillo Box", considerada pelo filósofo e crítico americano Arthur Danto o ponto de virada que decretou "o fim da arte".

Danto declara que, a partir da mostra de Warhol e da elevação de elementos comuns à categoria de obra artística, os critérios formais e visuais não bastavam mais para separar o que é arte daquilo que não é. Diferentemente de "Fonte" de Duchamp, a "Brillo Box" de Warhol não foi contestada. Tendo sido aceita como obra de arte, pôs um ponto final na linearidade histórica evolutiva e progressiva, formalista e materialista, proposta por Greenberg, que definia o que era arte a partir da análise de um estilo, da técnica e do material empregados.

FIM E PRINCÍPIO

No entanto, o "fim da arte" identificado por Danto é, paradoxalmente, o provável início daquilo que denominamos arte contemporânea, que tem como uma de suas características a impossibilidade de classificação por estilos, movimentos ou "ismos".

A partir do final dos anos 1950 e aos poucos, os artistas foram incorporando os temas propostos quase meio século antes por Duchamp em seus ready-mades, ressignificados por eles de acordo com cada contexto local e realidade individual.

Duchamp, entretanto, tinha consciência da vulnerabilidade à banalização do próprio gesto e buscou, de certa forma, proteger o ready-made com rigor e definições enigmáticas. Ele criou cerca de 20 desses trabalhos e prescreveu procedimentos que tornam praticamente inviável a produção de outros ready-mades duchampianos.

A escolha de um objeto pela absoluta indiferença por parte do artista, sem abordar questões estéticas, conceituais ou históricas, é uma das armadilhas: outros artistas sempre estarão citando o próprio Duchamp em suas ações de apropriação e deslocamento.

O francês gostava de manter uma aura misteriosa em torno do ready-made e, até o fim de sua vida, não encerrou a questão. Certa vez, afirmou: "O curioso sobre o ready-made é que nunca arrumei uma definição ou explicação que me deixasse totalmente satisfeito". Contudo, a apropriação de elementos do mundo e seu deslocamento para o universo da arte são as chaves para o entendimento.

Segundo o mexicano Octavio Paz (1914-98), vencedor do Nobel de Literatura, "em alguns casos os ready-mades são puros, isto é, passam sem modificação do atestado de objeto de uso ao de 'antiobras de arte'; outras vezes, sofrem retificações e emendas, geralmente de ordem irônica e tendente a impedir toda confusão entre eles e os objetos artísticos". "Fonte" está relacionada com o primeiro conceito; "Roda de Bicicleta", outro famoso ready-made de Duchamp, é um exemplo do estilo retificado.

Mais de uma vez Duchamp ressaltou que "o grande problema era o ato de escolher. Tinha de eleger um objeto sem que ele me impressionasse e sem a menor intervenção, dentro do possível, de qualquer ideia ou propósito de deleite estético. Era necessário reduzir meu gosto pessoal a zero. É dificílimo optar por um objeto que não nos interesse absolutamente, e não só no dia que o selecionamos, mas para sempre, e que, por fim, não tenha a possibilidade de tornar-se algo belo, agradável nem feio".

DUCHAMP PRESENTE

O debate entre o belo e o feio não é mesmo a questão da arte na "era pós-Duchamp". Segundo Paulo Herkenhoff, importante curador brasileiro, "vivemos em um ambiente artístico saturado de Duchamp". O francês é uma das principais influências para os artistas na atualidade, uma personagem tão importante para a história da arte quanto Picasso, por exemplo.

No Brasil, aquele 1964, ano do "fim da arte" de Danto e do início da ressonância mórfica duchampiana brasileira, também foi marcado pelo golpe militar. O país vinha de um período de maturação e efervescência cultural e de uma produção intelectual conectada com as vanguardas.

Na década de 1950, Brasília foi construída pelos arquitetos Oscar Niemeyer (1907-2012) e Lúcio Costa (1902-98), a bossa nova de João Gilberto e Tom Jobim (1927-94) ganhou o mundo, a literatura local foi revolucionada pela poesia concreta de Augusto de Campos, Décio Pignatari (1927-2012) e Haroldo de Campos (1929-2003) e a Bienal de São Paulo foi criada, impulsionando um diálogo direto com a cena artística internacional.

A partir de meados dos anos 1960, a ressonância mórfica duchampiana e a ditadura militar (1964-85) passaram a nortear parcela expressiva da produção artística brasileira. Aos poucos, os nomes que surgiam se distanciaram da heterodoxia estética do concretismo da década anterior e se aproximaram da arte conceitual, abordando constantemente temáticas políticas e de preocupação social.

Artistas brasileiros importantes, que iniciaram sua trajetória no fim dos anos 1960 e na década de 1970, possuem estreita conexão, quase visceral, com a obra de Duchamp: Tunga, Antonio Dias, Waltercio Caldas, José Resende, Carmela Gross, Artur Barrio, Regina Silveira, Paulo Bruscky e Cildo Meireles são alguns deles.

O projeto Inserções no Circuito Ideológico, de Meireles, por exemplo, é uma das propostas mais criativas a partir dessa chave dupla: Duchamp e política. Frases inscritas em garrafas retornáveis de refrigerante e em cédulas de dinheiro foram o modo encontrado pelo artista para transmitir e espalhar sua mensagem –no caso, sua obra de arte. Bruscky é outro que, desde o início, realiza ações e obras que questionam o sistema da arte, como no projeto performático "O que É a Arte? Para que Serve?".

Muitas dessas propostas foram vistas com grande desconfiança pelos militares-políticos e pelo público em geral. Assim como o ready-made de Duchamp, não foram reconhecidas como arte num primeiro momento. Tiveram que esperar alguns anos para serem absorvidas —o que começou a ocorrer, de forma gradual, somente na década de 1980, com o processo de redemocratização do país.

POLÊMICAS RECENTES

Nos anos 1980, os artistas brasileiros começaram uma inclusão, ainda que tímida e pontual, no cenário artístico global, incluindo museus, instituições, bienais e galerias. O retorno à democracia e a inserção dos artistas brasileiros na cena internacional arrefecem o viés político da produção local, mas não a influência de Duchamp. Os conceitos de apropriação e deslocamento tornaram-se recorrentes e foram amplamente incorporados.

Até o final dos anos 1990, os artistas brasileiros pautaram-se com frequência por questões sociológicas, em consonância com os anseios de mudança no país. A situação econômica difícil, a desigualdade social gritante e o "jeitinho" foram apropriados em abordagens que estabeleceram uma "estética da gambiarra", que se tornou um verdadeiro ready-made tupiniquim.

Hoje, se o tipo de obra nascida com o ready-made divide espaço com outras abordagens, nem por isso Duchamp deixa de ser o paradigma principal.

As polêmicas mais recentes no cenário das artes no Brasil —o abrupto fechamento da mostra "Queermuseu" pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, e os protestos contra a performance "La Bête", do artista Wagner Schwartz, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo— resgataram questionamentos acerca da validade do fazer artístico e da liberdade de expressão absoluta por parte dos artistas.

Tais questões evidenciam mais uma vez a influência e o vanguardismo de Duchamp, que, dez anos após ter causado perplexidade com o urinol, surgiu como Rrose Sélavy, seu alter ego feminino. O sobrenome brinca com a expressão francesa "c'est la vie", "assim é a vida".

Sélavy fez poucas e marcantes aparições públicas. Na primeira delas, numa foto de 1927, o artista aparece travestido de mulher, introduzindo discussões sobre questões de gênero –aliás, um dos assuntos mais abordados na arte atual.

A provável última aparição de Sélavy ocorreu em 1963, em uma performance na qual foi personificada no corpo nu de uma mulher, fotografada jogando xadrez com o próprio artista, dentro da sala do museu no qual ele exibiu sua primeira grande retrospectiva. Aqui, Duchamp se põe em posição de igualdade e em confronto direto com sua própria temática —uma das mais recorrentes na história das artes em todo o mundo: o nu, assunto que continua em pauta.

Muitos anos se passaram e, apesar de comemorarmos o 130º aniversário de nascimento de Duchamp, o 100º do ready-made e o 90º de Sélavy, a pergunta continua sendo a mesma: será isso arte?

DANIEL RANGEL, 41, mestrando em poéticas visuais na Escola de Comunicações e Artes da USP, é curador da exposição Ready Made in Brazil, em cartaz no Centro Cultural Fiesp de 10/10 a 28/1.


Endereço da página:

Links no texto: