Folha de S. Paulo


Leia traduções inéditas de poemas de John Ashbery, nunca editado no Brasil

SOBRE O TEXTO A "Ilustríssima" publica traduções inéditas de poemas do americano John Ashbery, morto último dia 3 e nunca editado no Brasil. Um dos nomes de proa de sua geração, ele foi comparado pelo célebre crítico Harold Bloom a Walt Whitman e Emily Dickinson.

Interior bem lavado

Dá pra andar, perguntei.
Claro que dá, disse. Vou andar com você um pouco.
Podemos falar de amor e de brincar
e do oceano sempre vizinho.

Não é bem assim eu disse.
O oceano seguramente nos acompanha de perto.
Caso contrário, perderia nosso respeito.
Quer sobretudo ficar aqui e ser leal.

É o que o impede de se esparramar pelo planeta.
Agora te entendo disse.
Fico feliz de te ver focado
dentro e fora dos sonhos disse.

A gente acorda amiúde num interior bem lavado
e o acha sujo, ou decepcionante
de algum modo. Nada planejado.

Sempre se volta ao assunto.
Não havia muito o que dizer, e isso já dissemos.
Calma, eu te carrego. Relaxe nos meus braços
pelo resto da noite, que estará lívida e com
extraordinariamente poucos funcionários.

Melhor: escancaradamente poucos funcionários.

A bancada está se soltando.

Recomendo-a veementemente.

*

Casuísmo

A melhora ilusória foi implicada, sua circularidade
vista como censura à gente honesta, uma Chicago
do cérebro. Logo outros entraram
na briga. Não era culpa nossa que à declinante
luz de fevereiro tantos parecessem cavilosos:
Afinal, a quem é que recorreriam?
Sua aparente consistência era algo sem precedentes,
não o de-grão-em-grão de ontem, sobras
de uma festa alheia, aposto. E se um bando
deles voltasse subitamente deslumbrado
com a comida caseira e decidisse morar
com os pais? Alcançarão a nota de corte?
E o que é que outro dia supostamente auspicioso nos
reserva? Sutileza exagerada? Nossos próprios pot-pourris?

Manuela Eichner
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 31-08-2017: Pintura de Deborah Paiva (Foto: Giovanni Bello/Folhapress, COTIDIANO) ***EXCLUSIVO FOLHA**** ORG XMIT: 30894

*

JOHN ASHBERY (1927-2017) foi um poeta americano. Venceu o Prêmio Pulitzer em 1976 por "Self-Portrait in a Convex Mirror" (autorretrato em um espelho convexo).

NELSON ASCHER, 59, poeta e tradutor, é autor de "Parte Alguma" (Companhia das Letras).

MANUELA EICHNER, 32, é artista visual.


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