Folha de S. Paulo


Don DeLillo, de 'Cosmópolis', volta com romance sobre morte e criogenia

SOBRE O TEXTO A "Ilustríssima" adianta um capítulo de "Zero K", romance do autor de "Cosmópolis" que a Companhia das Letras lança neste mês. Na trama, Jeffrey Lockhart vai ao encontro do pai para se despedir da madrasta, mas se depara com a tentativa de mantê-la congelada por criogenia.

Foto Giovanni Bello/Folhapress

Meu pai tinha deixado a barba crescer. Isso foi uma surpresa para mim. A barba era um pouco mais grisalha que o cabelo e tinha o efeito de enfatizar seus olhos, intensificar-lhe o olhar. Seria a barba de um homem ansioso para entrar numa nova dimensão de fé?

Perguntei: "Quando vai ser?".

"Estamos calculando o dia, a hora, o minuto. Em breve", ele respondeu.

Tinha sessenta e muitos anos, Ross Lockhart, ombros largos, movimentos ágeis. Seus óculos escuros estavam na escrivaninha à sua frente. Eu costumava me encontrar com ele em escritórios, em um ou outro lugar. Aquele escritório era improvisado, vários monitores, teclados e outros dispositivos espalhados pela sala. Eu sabia que ele tinha investido quantias polpudas nessa operação, nesse empreendimento, denominado Convergência, e o escritório era uma cortesia, para que ele pudesse permanecer em contato com sua rede de empresas, agências, fundos, trustes, fundações, consórcios, comunas e clãs.

"E a Artis."

"Está completamente pronta. Nenhuma hesitação, nenhum pé atrás."

"Não se trata de vida espiritual eterna. É uma coisa do corpo."

"O corpo vai ser congelado. Suspensão criogênica", ele disse.

"Então, em algum momento futuro."

"Isso mesmo. Vai chegar um dia em que haverá maneiras de neutralizar as circunstâncias que levaram ao fim. Mente e corpo recuperados, de volta à vida."

"Essa ideia não é nova. Estou certo?"

"A ideia não é nova, não. É uma ideia", prosseguiu, "que agora está se aproximando da concretização total."

Eu estava desorientado. Era a manhã do que seria meu primeiro dia passado ali do início ao fim, e o homem atrás da escrivaninha era meu pai, e nada daquilo me era familiar, nem a situação nem o ambiente físico nem mesmo o homem barbudo. Eu já estaria voltando para casa quando estivesse começando a absorver algo daquela experiência.

"E você tem confiança total nesse projeto."

"Total. No plano médico, no tecnológico, no filosófico."

"Tem gente pondo animal de estimação", comentei.

"Aqui, não. Aqui não tem nada de especulativo. Nada de hipotético nem de periférico. Homens, mulheres. Morte, vida."

Seu tom de voz era firme, tom de desafio.

"É possível eu ver o lugar onde a coisa acontece?"

"Muito improvável", ele respondeu.

Artis, a mulher dele, sofria de várias doenças debilitantes. Eu sabia que a esclerose múltipla era a principal responsável por sua deterioração. Meu pai estava ali como testemunha dedicada do falecimento dela, e em seguida como observador informado dos métodos iniciais que permitiriam a preservação do corpo até o ano, a década, o dia em que seria seguro redespertá"'lo.

"Quando cheguei aqui, fui recebido por dois seguranças armados. Me fizeram passar pelo procedimento de segurança, me levaram até o quarto, não disseram quase nada. É tudo que eu sei. E mais o nome, que parece coisa de religião."

"Tecnologia baseada na fé. É isso. Um outro deus. Acaba que nem é tão diferente assim de alguns deuses anteriores. Só que é uma coisa concreta, verdadeira, que funciona."

"Vida depois da morte."

"Um dia, sim."

"A Convergência."

"Isso."

"Quer dizer uma coisa em matemática."

"Quer dizer uma coisa em biologia. E em fisiologia. Deixa pra lá", ele disse.

Quando minha mãe morreu, em casa, eu estava sentado ao lado da cama e havia uma amiga dela, uma mulher de bengala, parada em pé à porta do quarto. Era assim que eu me lembraria daquele momento, reduzido, agora e para sempre, a uma mulher na cama, uma mulher à porta, a cama em si, a bengala de metal.

Disse Ross: "Numa área que serve de unidade de tratamentos paliativos, às vezes eu fico com as pessoas que estão sendo preparadas pra se submeterem ao processo. Uma mistura de expectativa com admiração. Muito mais palpáveis que apreensão ou incerteza. Uma reverência, um estado de perplexidade. Todo mundo está no mesmo barco. Uma coisa muito maior do que elas imaginavam. Elas sentem que têm em comum uma missão, um destino. E eu dou por mim tentando imaginar um lugar assim séculos atrás. Uma hospedaria, um abrigo pra viajantes. Peregrinos".

"Está bem, peregrinos. Voltamos à religião tradicional. Posso visitar essa unidade?"

"Provavelmente não", ele respondeu.

Entregou"'me um pequeno disco fino preso a uma pulseira. Explicou que era semelhante à tornozeleira que mantinha a polícia informada a respeito do paradeiro de um suspeito, enquanto aguarda o julgamento. Eu teria permissão para entrar em certas áreas deste nível e de um nível acima, mas só nelas. Se eu retirasse a pulseira, a equipe de segurança ficaria sabendo.

"Não vá tirando conclusões apressadas a respeito do que você vê e ouve. Este lugar foi projetado por pessoas sérias. Respeite a ideia delas. Respeite o lugar em si. Segundo a Artis, a gente deve encarar isso aqui como uma obra em andamento, uma forma de land art, arte da terra. Construída na terra, afundada na terra. Acesso restrito. Definido pelo silêncio, humano e ambiental. Também é uma espécie de túmulo. A terra é o princípio balizador", explicou. "Voltar da terra, emergir da terra."

Passei algum tempo perambulando pelos corredores. Estavam quase vazios, três pessoas, espaçadamente, cumprimentei cada uma delas com a cabeça, recebendo de volta um único olhar relutante. As paredes eram em tons de verde. Eu entrava num corredor largo, virava em outro. Paredes nuas, sem janelas, portas bem distantes, todas fechadas. As portas eram de cores relacionadas, tons pastel, e eu me perguntava se haveria um sentido naquelas fatias do espectro visível. Era o que eu fazia em qualquer ambiente novo. Eu tentava injetar significados, tornar o lugar coerente ou ao menos me localizar nele, confirmar minha presença intranquila.

Ao final do último corredor havia uma tela fixada num nicho no teto. Ela começou a ser abaixada, estendendo"'se de uma parede à outra, chegando quase até o chão. Aproximei"'me lentamente. De início todas as imagens eram de água. Era água corrente atravessando bosques e transbordando margens de rios.

Zero K
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Eram cenas de chuva caindo sobre socalcos, longos momentos de chuva e mais nada, depois gente correndo para todos os lados, pessoas impotentes em barcos pequenos a sacolejar"'se em corredeiras. Eram templos inundados, casas arrastadas em barrancos. Eu via água subindo em ruas de cidades, carros e motoristas afundando. O tamanho da tela causava um efeito bem diverso de um noticiário. Tudo era enorme, as cenas se prolongavam muito além do que ocorre na tevê. Estava ali à minha frente, no nível de meus olhos, imediata e real, uma mulher em tamanho natural sentada numa cadeira torta dentro de uma casa derrubada numa avalanche de lama. Um homem, um rosto, debaixo d'água, olhando para mim. Fui obrigado a dar um passo atrás, mas não consegui despregar os olhos. Era difícil não olhar. Por fim olhei de relance para o corredor atrás de mim, esperando que alguém aparecesse, uma outra testemunha, uma pessoa que pudesse ficar parada a meu lado enquanto as imagens se sucediam e se fixavam.

Não havia áudio.

DON DELILLO, 80, escritor, ensaísta e dramaturgo americano, é autor de "Homem em Queda" (Companhia das Letras).

PAULO HENRIQUES BRITTO, 65, poeta e tradutor, é autor de "Mínima Lírica" (Companhia das Letras).

DEBORAH PAIVA, 67, é artista plástica.


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