Folha de S. Paulo


crítica

Novo livro de Nuno Ramos é uma maneira de lidar com a morte

Bruno Santos/Folhapress
Nuno Ramos durante preparação para a performance
Nuno Ramos durante preparação para a performance "111 Vigília Canto Leitura", contra a anulação do julgamento que condenou 74 policiais pelo assassinato dos detentos no Carandiru

Que palavra!, repetem sucessivamente as vozes que ouvimos em "Adeus, Cavalo", admiradas diante de algum vocábulo que acabam de proferir. Porém, mais do que um elogio aos encantos sensíveis ou ao preciosismo de certos achados de linguagem, esse refrão aponta para o lugar preponderante que o teatro ocupa no mais recente livro de Nuno Ramos.

Ao seguirmos aquele corpo-refrão, como ao lermos a palavra "cavalo" que percorre em caixa alta todo o texto em diversas configurações, temos de lidar com a potência heterogênea da fala, na qual pensamos montar como em um cavalo, mas que nos derruba o tempo todo, leva-nos de volta ao mesmo ponto ou aos lugares mais inesperados.

Ecoando experiências de livros como "Ó", em que se postulava uma peculiaríssima "teoria da inexpressividade" (na qual um teatro feito de frases podia durar dias ou semanas), estamos agora diante de uma espécie de encenação para ser lida, em cujos curtos e densos atos assistimos aos desdobramentos da fala de um velho ator entrevistado por um repórter.

Não um texto dramatúrgico, mas uma experiência de leitura cindida entre réplicas organizadas de modo coral e uma gestualidade física inscrita por meio de rubricas que acionam uma imaginação visual.

Cisão que é reposta justamente pela apresentação do verdadeiro protagonista: a voz ou as vozes. Todo o jogo cênico é partilhado entre uma discreta e algo oblíqua voz narradora, colocada no mesmo nível das rubricas; a voz do velho, que em boa parte do tempo lê textos cuja origem narrativa é em si escapadiça e movediça; e a incorporação de três outras vozes-personagens, as de Procópio, Ungaretti e Nelson Cavaquinho.

É o próprio velho quem ressalta sua capacidade de "recebê-las em seu corpo incomum" de ator, que logo após um espetáculo desenrolado em uns poucos e opacos gestos, passa o resto do tempo entre uma banheira e seu quarto, com o repórter por acompanhante.

Chegamos então a uma tensão decisiva: o espaço e o tempo concretos podem ser limitados, mas o fluxo da voz é aberto e proliferante. "Sou um poente. Um peixe carnudo. Um cavalo. E algumas vozes que na?o consigo saber de quem sa?o", diz o velho.

Como em "Ai de Mim", escultura-instalação de cujo corpo emanava uma série de diálogos teatrais, a questão aqui é, de certa forma, trabalhar diversos planos de articulação das vozes.

Teatro sem palco que pode ser encenado ou, no limite, teatro da escuta que transforma o espaço em um lugar de fala. Teatro "sem público" ou "em qualquer parte", como uma canção que se assobia.

PARECENÇA DE TUDO

É aí que reencontramos todo um leitmotiv da escrita de Nuno Ramos: o flerte com a ideia de uma "contiguidade" generalizada. Quem fala encontra-se, pelo toque, em meio à "parecença de tudo, bicho e planta, tapetes, arma?rios e gavetas, e aquilo que vai dentro das gavetas, pontas de lápis, borrachas, durex sem cola, bics sem tinta, clipes tortos".

A voz que escutamos, tal o corpo do ator, como um lugar de passagem, radicaliza a precedência do cosmo sobre o homem da metáfora do "theatrum mundi": tudo "em fuga", especialmente a memória, escoando através do instante teatral e da materialidade do sujeito como "caniço" pensante, vibrante e sonoro.

Há uma cena de fundo insistente –o Brasil nos anos 1970–, da qual a entrada triunfal de Nelson Cavaquinho fardado e montado em seu cavalo no enterro de Procópio é emblemática, sobretudo porque, ecoando a letra de Nuno Ramos para "Caminhando", atualiza o conflito entre a lei e a boemia, a formalidade da cena e o teatro da vida, o livro e a canção.

Adeus, Cavalo
Nuno Ramos
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Mas tudo aqui é atravessado pela presença demoníaca de uma "voz cavalo" que se impõe pela força e, ao mesmo tempo, nos conduz ao ritmo corporal que se abre como pura possibilidade. A beleza da cena é tornar opaca, fantasmática, densa e trágica essa flutuação.

Entre a marcha e o samba, há o cavalo. O livro pode ser lido como um adeus, um modo de lidar com a morte. Mas é por lidar com esse horizonte de luto que permite estabelecer outras relações com os seres, as coisas e a linguagem –e com a própria natureza dessas relações.

Ele nos faz sonhar com outro modo de partilha das vozes, com outro animal político que, na falta de um "batimento comum às coisas", ouça Nelson: "Nunca volte para casa". Bem-vindo, cavalo.

ROBERTO ZULAR, 46, é professor de teoria literária e literatura comparada na USP.

ANDRÉ GOLDFEDER, 30, é doutorando em teoria literária e literatura comparada pela USP.


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