Folha de S. Paulo


Em conto inédito, a história de um escravo à deriva no mercado do Rio

SOBRE O TEXTO A "Ilustríssima" adianta nesta página um excerto do conto "Valonguinho", que compõe a antologia "Nas Águas desta Baía Há Muito Tempo", de Nei Lopes, a ser publicada pela Record na primeira quinzena de setembro.

lese pierre lima

Pouco mais de um metro de altura, encurvado, membros atrofiados, olhos mortiços, boca sempre aberta, ele era –como se dizia– um resto deixado no velho mercado de escravos. Ninguém nunca o quis ou reivindicou; e ele, escorraçado como um cachorro, chutado como um embrulho sem serventia, foi ficando por ali, sobrevivendo de sobras, e cumprindo alguns mandados, quando não havia ninguém para fazê-lo.

Não falava, ou por um defeito congênito ou por uma patologia social; e não tinha nome: era sempre o moleque, o negro, o preto, o coisa, o miquimba. Até que, quando começou a aparecer nos trapiches do Saco do Alferes, do Caju, em Maria-Angu e até nas ilhas, acabou sendo nomeado Valonguinho. Também não se sabe se é verdade que esteve entre os quilombolas do Zumbi da Ilha, como reza a lenda –aliás, num anacronismo desconcertante.

Não se sabe, mesmo, se fazia algo mais do que vagar daqui pra ali, de lá pra cá, cumprindo ordens. Mas parece que, na Guerra de Floriano, aí sim ganhou dimensão de ser humano, lutando, não se sabe a razão, a favor da ordem, mal ou bem, constituída.

O fato é que a escravidão desumanizava qualquer um.

Já nos trapiches do Valongo, homens, mulheres e crianças ficavam o dia inteiro sentados ou deitados, encostados às paredes, às vezes saíam à rua. Seu aspecto era horrível: o bodum, a catinga que exalavam aqueles corpos infelizes era tão forte e desagradável que, a não ser que se estivesse acostumado, era difícil até passar perto.

– Era um horror! Quando eu conheci lá o depósito, encontrei centenas deles praticamente nus; quase todos; homens e mulheres. Tudo com as carapinhas rapadas, naquela fedentina medonha. Ficavam sentados em bancos baixos ou amontoados no chão. A aparência dava medo.

– Eu fui lá também. Todos, machos, fêmeas, filhotes andavam praticamente nus, só com um molambo encardido envolvendo a cintura e com unguentos pelo corpo pra disfarçar as feridas. Comiam sempre o mesmo: uma tamina de feijão duro, farinha e carne-seca.

– Tinham também frutas, como laranjas apodrecidas, bananas machucadas e outras da terra, quase sempre em restos. E quase nunca se queixavam. Ou o faziam, quem sabe? –encostados à parede, geralmente de cócoras, ao redor do fogo, cantando aqueles corinhos estranhos, batendo aquelas palminhas compassadas, feito criança pequena.

– A maioria dos que eu vi eram crianças, meninos e meninas. E quase todos tinham marcas de ferro quente no peito ou em outras partes do corpo. Devido à sujeira dos navios e à qualidade da comida, tinham sido atacados por doenças de pele. Primeiro apareciam pequenas manchas; que logo se abriam em feridas. Com aquelas fisionomias abobalhadas, pareciam criaturas de outro mundo. E, em sã consciência, ninguém reconhecia aquilo como gente. Era uma coisa medonha...

No Valongo, quando chegava um comprador, quase sempre cercado de ciganos, calçados de botas, brincos nas orelhas e chicotes –cada um tentando convencer o comprador de que sua mercadoria e seu preço eram melhores–, os negros se agitavam, se alegravam e se ofereciam à venda. Mas quando o negócio era fechado, era aquele desespero: irmãos separados, filhos arrancados dos pais, casais desfeitos"¦ E, de um modo geral, aquilo era para sempre: nunca mais parentes, amigos, maridos, mulheres"... Nunca mais.

Valonguinho assistiu a muitas dessas cenas. Mas jamais esboçou qualquer expressão de tristeza ou alegria. Sozinho veio, sozinho ficou, sozinho foi se desfazendo, assim, sem parentes, sem amigos, sem idade, como um cão da rua, como uma pedra do cais. Talvez fosse melhor morrer ali mesmo e ali mesmo ser enterrado. Junto com os milhares de pretos novos que já chegaram quase sem vida ou, de modo inapelável, condenados à morte e ao esquecimento.

Pobrezinho! Ele era apenas um demente jogado no porão de um navio por acaso e descuido, num bolo de cativos num mercado qualquer da Costa d'África, talvez na Mina, talvez em Cabinda, São Paulo de Luanda, São Filipe de Benguela.

Veio entorpecido, deitado o tempo todo, sem nenhuma noção de nada, e sem jamais ser notado. E se acaso fosse percebido e carregado para o convés, certamente não conseguiria nem ficar de pé. Nem sequer pressentia os para mais de 200 semelhantes em desgraça, subindo a escada de rastros e aos empurrões, sufocados pelo ar empestado e implorando por pelo menos um gole d'água que lhes iludisse a sede. Mal distinguia o zumbido daquele enxame de abelhas tontas saindo pelo buraco da colmeia, enchendo todo o convés, da proa à popa. Mal sentia o pesado cheiro azedo que vinha dos moribundos e mortos amontoados em uma só massa.

Em cima, num canto a bombordo, um grupo nos últimos estágios da exaustão. Embora tivessem conseguido rastejar até o lugar onde a água fora brevemente oferecida, na esperança de um gole do líquido essencial, incapazes de retornar a seus lugares, jaziam prostrados ao redor da tina vazia. Em outro canto, a estibordo, outros exibiam sinais dos mais diversos males: a bouba, que manchava a pele, produzindo inchaço no pescoço; as bitacaias, que roíam os entrededos naquela comichão dos infernos e davam causa ao ainhum; o gundu, que descarnava os narizes; a caquexia do Egito, deixando o infeliz só pele e osso, como múmia desenrolada; a frialdade"... Um verdadeiro catálogo das doenças africanas fazendo sua sinistra e ceifadora entrada em águas do Brasil. E além delas, moléstias como as bexigas, o sarampão, a morfeia, a disenteria, que já vinham de outros continentes e paragens.

Alguns já chegavam cegos; outros, esqueletos vivos, incapazes de suportar o peso dos próprios corpos, eles vinham. Mães com crianças pequenas penduradas nos peitos, mas incapazes de dar a elas uma gota de leite. Uns menos, outros mais; porém todos feridos ou chagados. As escoriações provinham de estar deitados sobre o soalho durante tanto tempo. O mau cheiro, de fato insuportável, anunciava doença, deficiência, miséria.

Por todos os lados, rostos esquálidos e encovados tornados ainda mais hediondos pelas pálpebras intumescidas. Em quase todos, a expressão de completo estupor. E, quando não, olhares vagando penosamente ao redor, apontando com os dedos suas bocas crestadas ou seus olhos purulentos daquele mal, apelidado "dordolhos", do qual a maioria parecia sofrer. No mais, eram figuras reduzidas a pele e osso, curvadas pela postura que foram forçadas a adotar na falta de espaço, e que o doloroso enrijecimento das juntas as obrigou a manter.

NEI LOPES, 75, compositor, cantor e escritor, é autor do "Dicionário da História Social do Samba" (Civilização Brasileira).

LESE PIERRE LIMA, 34, pernambucano de Afogados da Ingazeira, é artista visual, barista e professor de artes.


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