Folha de S. Paulo


Bailarino entra em cena logo depois de receber notícia de morte trágica do pai

Porto Alegre, 2002

Eu me lembro como se fosse hoje do impacto que a chegada do bailarino Steven Marshall ao grupo Momix causou em todos. Era 2002, e o Momix fazia sua turnê pelo Brasil com o espetáculo "Opus Cactus".

Bem, voltando um pouco na história: era minha primeira temporada como gerente de turnê da companhia. Formado em administração, tinha passado longos anos na Europa trabalhando em multinacionais como a Danone e havia voltado à Argentina –a princípio, para uma vida sossegada no campo.

Só que a crise no país me fez aceitar o convite de meu primo Julio Alvarez, ex-bailarino e empresário do grupo fundado por Moses Pendleton, integrante do Pilobolus que criou essa adorável dissidência.

Foi uma circunstância, mas me trouxe enorme prazer.

Divulgação
O bailarino Steven Marshall, da Momix, durante apresentação em Buenos Aires, em junho de 2017
O bailarino Steven Marshall, da Momix, durante apresentação em Buenos Aires, em junho de 2017

E em 2002 eu estava no Brasil. A turnê vitoriosa se encerraria em Porto Alegre. Aquele também era o primeiro tour de um jovem de 19 anos, muito tímido, introvertido, retraído, muito bonito. Steven era garoto, mas ali todos já percebiam o incrível bailarino que se tornaria pouco tempo depois.

Nascido em Long Island, com formação clássica na School of American Ballet em Nova York, Steven começava uma trajetória que o transformaria no melhor da companhia, na opinião de muitos críticos e jornalistas.

Estávamos em Porto Alegre. Era madrugada de sábado para domingo quando fui chamado por uma integrante da companhia que, chorando, pediu que eu fosse ao quarto de Steven. Ali já se reuniam os bailarinos, também chorando. Steven, arrasado, conseguiu contar que tinha recebido, poucos minutos antes, a notícia de que o pai morrera em circunstâncias pavorosas.

Naquela noite, ninguém dormiu. Tomei a decisão de que a última apresentação ocorreria sem Steven. Horas depois, porém, ele apareceu no teatro pontualmente e insistiu em executar a coreografia.

Ainda me emociono ao lembrar esse menino, com o coração partido, entrando no palco e fazendo a sua parte, saindo do palco para chorar nas coxias, voltando para o palco... E assim numerosas vezes, durante uma hora e meia. Terminamos o espetáculo, e ele saiu direto para o aeroporto, rumo ao funeral do pai.

Steven se tornaria mais do que um bailarino do Momix: foi, durante todos esses anos, um dos intérpretes favoritos de Moses, uma espécie de encarnação das ideias arrojadas do coreógrafo. Aliava desempenho e beleza que viriam a fazer dele um verdadeiro símbolo da companhia.

Moro no Rio de Janeiro desde 2005, quando me casei com uma brasileira, e continuo trabalhando com a companhia aqui no país. Também continuo capitaneando as vindas do Momix ao Brasil.

Ansioso por reencontrar Steven, soube que ele havia dançado sua última récita em junho, no Teatro Coliseo, de Buenos Aires.

O ciclo se fechou. Ele agora é pai de uma menina e vai estudar enfermagem. Palavras dele: "Depois de tanto tempo trabalhando meu corpo em cena, decidi aprender sobre o funcionamento do organismo e sobre como curar males e tratar da saúde. Minha última turnê foi muito emocionante, mas encerrei essa parte da vida".

Vai ser estranho para mim ver o Momix em cena sem Steven. Especialmente dessa vez, em que a companhia celebra 35 anos com os números mais aplaudidos da carreira, números que Steven praticamente criou com Moses e que carimbou com sua performance impecável.

Mas o Momix é repleto de artistas maravilhosos, pessoas solidárias como aqueles colegas que abraçaram Steven Marshall na noite de tristeza. E que aprenderam com ele o profissionalismo e a alegria de viver e trabalhar, mesmo na hora mais escura.

JUAN LEGNA, 65, é produtor da companhia americana de dança Momix, em cartaz no Theatro Municipal do Rio de 29/8 a 3/9.


Endereço da página:

Links no texto: