Folha de S. Paulo


Incêndio em prédio de Londres deixa trauma maior que ataques terroristas

Daniel Leal-Olivas - 27.jul.2017/AFP
Região próxima à torre Grenfell Tower (à direita, no fundo), em Londres
Região próxima à torre Grenfell Tower (à direita, no fundo), em Londres

A sequência de três ataques terroristas na cidade desde março –aí incluído o atropelamento de fiéis à saída de uma mesquita por um extremista de direita– e o ainda mais letal atentado a bomba num show em Manchester, no final de maio, talvez tenham acabado por dispersar um pouco a atenção do resto do mundo.

Para quem vive em Londres, porém, e até para a Inglaterra como um todo, não há dúvida de que foi outro o acontecimento trágico de maior impacto em décadas: o incêndio num prédio residencial no oeste da capital, entre os bairros de Kensington e Chelsea, que agora completa dois meses com uma investigação criminal em curso e o país mais polarizado do que nunca quanto à responsabilidade política pela tragédia.

A imagem terrível daquela imensa pira de 24 andares acesa no meio da noite, onde inúmeros moradores –80, numa contagem ainda provisória– morreram confinados, não se apagará tão cedo da memória dos londrinos.

Também é irônico que haja comparações por aqui entre Grenfell Tower e as Torres Gêmeas do 11 de Setembro nova-iorquino. Sem ter esquecido o abalo do terrorismo, Londres acabou por amargar um luto parecido não pelos atentados recentes, mas por um acidente.

Evidentemente, os dois eventos não se comparam em escala, tampouco no impacto para além da cidade, mas a torre de apartamentos carbonizada com dezenas de corpos reduzidos a cinzas ainda lá dentro –uma sombra sinistra a espreitar quem chega ou sai de metrô da estação Latimer Road, ali ao lado– é uma ferida aberta que começa a ganhar simbolismo parecido com o do Marco Zero em Nova York.

Reforçando o paralelo, Londres contratou no pós-trauma os especialistas que trabalharam nos escombros do World Trade Center, inclusive na contagem dos mortos –alguns dos quais, lá como aqui, sem identificação possível.

DEBATE INFLAMÁVEL

Meses atrás, quando, ao som da histeria conservadora, Sadiq Khan se tornou o primeiro prefeito muçulmano de uma capital europeia, nenhum outro tema além do terrorismo islâmico radical seria pretexto para uma boa briga política em Londres.

Grenfell Tower parece ter mudado violentamente essa premissa. É que o debate subjacente à tragédia fala de certo abandono –talvez criminoso, segundo os críticos mais ferrenhos dos antecessores conservadores de Khan na prefeitura– de políticas públicas, em geral, e habitacionais, em particular.

Na Grenfell Tower, o descaso teria sido sobretudo com a segurança dos 129 apartamentos de moradia popular (numa vizinhança consideravelmente abastada), cujo revestimento externo barato, altamente inflamável, potencializou a letalidade da tragédia.

BBC CONSTRANGIDA

Isso tudo num momento em que o governo central, também conservador há sete anos, é diariamente bombardeado pela suposta crueldade com que aplica o torniquete nas contas públicas.

Um dos principais focos de indignação popular é o achatamento quase sem precedentes dos salários de algumas categorias de servidores públicos (professores primários e pessoal do sistema público de saúde, em especial).

Nesse contexto, constrangimento adicional foi a divulgação, pela estatal BBC, dos salários astronômicos de mais de uma centena dos principais nomes entre seus jornalistas. Os dez mais bem pagos embolsam entre 400 mil e 2 milhões de libras por ano.

ELITE ALIENADA

Mas nada causa maior indignação no distinto público britânico do que a porta giratória entre política profissional e imprensa. Como principal jornal popular de Londres, com distribuição gratuita desde 2009 e 850 mil exemplares de circulação diária, o "Evening Standard" tinha de estar na linha de frente da cobertura do incêndio em Kensington.

Mas quem o jornal havia contratado pouco antes, também a peso de ouro, como seu editor-chefe? George Osborne, o artífice da austeridade nos anos de David Cameron como primeiro-ministro. Para alguns, tratou-se da ilustração mais perfeita da alienação cada vez maior de uma elite de representantes eleitos e gente da imprensa (BBC incluída) em relação ao cidadão comum.

Por essas e outras é que Grenfell vai se tornando um marco num tempo de profundas divisões.

CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e em Cambridge, é jornalista e tradutor.


Endereço da página: