Folha de S. Paulo


Uma entrevista com Décio de Almeida Prado gravada em fitas cassete

São Paulo, 1997

Arquivo Pessoal
Páginas da revista
Páginas da revista "Humanidades", de 1998, em que a entrevista foi publicada

Quando cheguei às imediações da casa onde morava Décio de Almeida Prado (1917-2000), no Pacaembu, para a entrevista combinada dias antes, o mestre fazia seu passeio habitual em frente às residências vizinhas. Enquanto eu o acompanhava no breve trajeto, começamos informalmente a conversa.

Falamos sobre o Teatro Brasileiro de Comédia, os atores Jaime Costa (1897-1967) e Cacilda Becker (1921-69), o crítico Miroel Silveira (1914-88), contemporâneos de Décio. Simpático, ele respondia às observações voltando o rosto sorridente para o interlocutor.

Mostrava-se gentil nesse primeiro contato pessoal (havíamos conversado por telefone noutra ocasião). A professora e ensaísta Maria Silvia Betti, ex-aluna de Décio, nos acompanharia na visita e chegou logo em seguida.

A ideia era obter um documento espontâneo sobre o teatro brasileiro desde a gênese. Sim, fazia-se teatro nas caravelas, "durante as calmarias", e o primeiro dramaturgo atuante no país, José de Anchieta, surgiu na segunda metade do século 16. O roteiro de questões nos levaria, um pouco aos saltos, até o século 20.

Décio de Almeida Prado
Joao Roberto Faria
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Logo começamos a gravar as falas por meio de aparelho cassete, desses que já não se fabricam. Estávamos em agosto de 1997, quando o crítico e historiador completava 80 anos. Entrevistas e artigos relativos ao aniversário e um livro-homenagem, "Décio de Almeida Prado: Um Homem de Teatro" (Edusp), haviam sido publicados nos dias anteriores.

Partimos do teatro possivelmente praticado nas velhas naus e da relação plausível, embora remota, dos autos de Anchieta com certas peças de Ariano Suassuna e João Cabral. Sem demora alcançamos o que talvez tenha sido o período predileto do historiador: o romantismo.

Décio apontou o caráter político, participante, do teatro romântico, inclusive no Brasil: "É um engano pensar que o romantismo era alguma coisa afastada da vida, é uma visão que se tem hoje em dia do romantismo, mas é errada, é o contrário".

Se as peças de Gonçalves de Magalhães ligavam-se à agenda política do então jovem país independente, as de José de Alencar, décadas mais tarde, privilegiaram temas sociais e psicológicos –o casamento por dinheiro, por exemplo. Mas sem a crueza do naturalismo, lembrou Décio (mencionando Machado de Assis): "Quem foi criado com o leite romântico não atura o beefsteak naturalista".

Assunto cercado de alguma polêmica era a recepção dada às comédias e revistas tradicionais pela geração de Décio.

Apresentei ao crítico uma declaração do diretor Flávio Rangel (1934-88), para quem "se condenou erradamente o tipo de espetáculo que faziam a Alda Garrido [1896-1970] e o Jaime Costa", astros do velho teatro, "herdeiros de uma tradição que deveria ter sido mantida e adaptada".

Décio fez silêncio por instantes. Mas respondeu: "Essa comédia já estava havia 20 anos, 30 anos se repetindo, estava esgotada. E o sujeito então quer uma coisa diferente, nova". Os embates do jovem jornalista com o ator Procópio Ferreira (1898-1979), em quem o crítico maduro reconhecerá "enorme talento cômico", ligam-se à mesma circunstância.

Décio falava sobre os dotes de Dercy Gonçalves (1907-2008) e Colé (1919-2000) quando o primeiro lado da fita terminou, sem que percebêssemos. Logo trocamos o lado e retomamos a conversa.

Ao tratar de Lenormand, autor de vanguarda encenado no Brasil pelo grupo de Álvaro Moreyra (1888-1964), recordou, bem-humorado: "O comentário maldoso que eu ouvi na época era que 'Ásia' [o título da peça] realmente devia se ler 'Azia'". A sério, ponderava: "A ideia de que só o teatro comercial morre é errada, a vanguarda morre também".

Um ponto de inflexão: Zé Celso, com o Oficina, desafiou "certas regras gerais" ao encenar, em 1967, "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade (1890-1954). A passagem do moderno ao contemporâneo ocorre nessa fase. Nelson Rodrigues (1912-80) e Gerald Thomas foram outros nomes citados durante os 60 minutos que registramos (a matéria seria publicada na revista "Humanidades", da UnB, em 1998).

Falávamos sobre o Grupo Universitário de Teatro, que Décio dirigiu de 1943 a 1948, quando o segundo lado da fita chegou ao fim. De novo, ninguém notou.

FERNANDO MARQUES, 58, é professor do departamento de artes cênicas da UnB e autor de "A Província dos Diamantes: Ensaios sobre Teatro" (Autêntica/Siglaviva).


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