Folha de S. Paulo


Leia poema inédito de Edimilson de Almeida Pereira, que participa da Flip

SOBRE O TEXTO Este poema inédito integra o mesmo universo que aqueles reunidos em "qvasi", que a editora 34 lança durante a Flip. O poeta participa de mesa da programação oficial na quinta (27), com Beatriz Resende e Felipe Botelho Corrêa.

Camile Sproesser

1 UMA CAMA PARA O PAI. Não se engorda três vasos, nem com o melhor farelo. Por estar ditado, ninguém se atrevia a lhe perguntar quais os tais. Se bem não faltasse vontade. Porque na carência do que fazer, a burla com a palavra era um divertimento. Mas, dessa feita, não. Nenhum queria rilhar às custas do pai, fosse porque a mãe lhe morrera de pouco ou porque carecíamos das ferramentas para dizer. Os vazios saíam de sua boca como feras do apocalipse e nos punham contra a parede. E se tivessem as unhas do filador de porcas? Pior: e se o respingo de sua saliva desse em ferida, como a rosa vermelha?

Não havia do que rilhar. O pai era nosso, de pele enferma e macia voz. Suas orações, como um carrinho de mão, iam até a borda com a ânsia de mitigar os vãos. Aos poucos, a ruga de um deles cedia e no lugar repontava uma horta. Dias de grã alegria. O corpo conciliado não dava à cabeça tempo para a aritmética. Porém, o que é da morte só para engano se tapa. Vestida de boa senhora, ela injeta a sombra onde o sol durava. Ariadne sem piedade.

2 É desse medo que me perturbo. Onde a severa esteve, sem deixar cadáver, mas o assunto dele. O suficiente para um menino não abandonar no homem a sua desventura. A solidão da descoberta, que se faz em outro tempo, olhando baús e outras resmas. Daí salta um retrato que nos assalta aos sete anos. Nessa idade, deveriam saber que o melhor de nós, o que almejaremos ser, já está ali, como um desperdício de mangas no quintal. Eles deveriam saber disso e nos livrar dos fantasmas que, gentilmente, educam para nos acompanhar.

Um retrato aos sete anos é tão importante, que o tiramos na escola. E jamais o tiramos de nossos pertences. Mesmo que o queiramos secreto, mais tarde, porque naquele dia algo não funcionava bem: um corte indesejado de cabelo, uma sujeira nas unhas, um rubor, enfim, de quem não imagina trairá a si mesmo. Eu me lembro –por isso, minto– de minha foto, aos sete anos. Eu tinha mais rugas, mas entendo que não me apreciassem por isso. Sempre ouvi dizer que o silêncio em mim era precipitado.

Não o silêncio de quem nada diz. Eu, com os outros, soube gritar e falar em hora imprópria. Arrastei as cadeiras e derrubei os pratos de família, aqueles que não se poderiam romper. Cometi os pecados todos do rumor. Nunca foi, pois, pelo silêncio cobrado como responsabilidade que eu me arranhei. Foi por aquele outro, armado entre as palavras.

EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA, 54, poeta e professor do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Juiz de Fora, lança "A Saliva da Fala - Notas sobre a Poética Banto-Católica no Brasil" e "Entre Orfe(x)u e Exunouveau" (Azougue Editorial).

CAMILE SPROESSER, 31, é artista plástica.


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