Folha de S. Paulo


Morte de Nobel chinês escancara hipocrisia do regime comunista

RESUMO Morto no último dia 13 enquanto era mantido prisioneiro pelo Estado chinês, o dissidente Liu Xiaobo escancara o maior desafio atual do Partido Comunista: como manter a propaganda de que o governo busca recriar uma ordem moral se ele ainda encarcera pessoas apenas por expressarem suas opiniões?

Dale De La Rey - 15.jul.2017/AFP
Marcha realizada em Hong Kong em homenagem ao ativista chinês Liu Xiaobo, que morreu no dia 13
Marcha realizada em Hong Kong em homenagem ao ativista chinês Liu Xiaobo, que morreu no dia 13

Entre cavalheiros com propósito e homens benevolentes, embora seja inconcebível que procurem continuar vivos à custa da benevolência, pode acontecer de terem que aceitar a morte para que a benevolência se realize.

Confúcio, "Analectos"

Em 1898, algumas das cabeças mais inteligentes da China se aliaram ao imperador Guangxu, jovem governante que procurava se afirmar pela imposição de reformas de abertura dos sistemas político, econômico e educacional. Seus adversários, porém, reagiram com presteza e depuseram o imperador, o que levou seus conselheiros a fugir do país para preservar a vida.

Um deles, contudo, permaneceu. Era Tan Sitong, jovem estudioso de um canto distante do império.

Tan era um dos ensaístas mais provocadores de sua geração. Tinha publicado um livro influente no qual criticava os efeitos do absolutismo. Havia todas as justificativas possíveis para ele salvar sua própria pele e, assim, poder contribuir com batalhas futuras.

Ocorre que esses argumentos também o fizeram entender como era importante permanecer na capital imperial: se ele enfrentasse a morte com dignidade, poderia chamar a atenção das pessoas para a situação difícil da China.

Assim, enquanto seus amigos embarcavam para o Japão ou fugiam para as províncias, Tan foi a um pequeno hotel de Pequim e esperou pelas tropas imperiais.

Antes de ser decapitado, conseguiu proferir aquelas que são hoje algumas das palavras mais famosas no esforço chinês de um século e meio para erguer um Estado pluralista moderno: "Eu quis matar os ladrões, mas me faltou força para transformar o mundo. É aqui que devo morrer. Alegrem-se, alegrem-se!".

Não pude deixar de pensar em Tan nesses últimos dias, enquanto o ativista pró-democracia mais conhecido da China, Liu Xiaobo , morria de câncer de fígado, num leito de hospital carcerário. A morte chega para todas as pessoas, e um câncer não é o mesmo que a espada de um carrasco. Ainda assim, as mortes de Liu e Tan parecem de algum modo ligadas através dos 119 anos que as separam.

Como Tan, Liu apostou tudo em uma causa cujo saldo imediato parecia desolador –no caso de Liu, os protestos da praça Tiananmen (da Paz Celestial) em 1989, em Pequim. Com o tempo, a história mostrou a validade do gesto de Tan. Pergunto-me se fará o mesmo com Liu.

Quando explodiram os protestos em Tiananmen, Liu estava no exterior, mas optou por voltar à China. Após a repressão brutal dos manifestantes, muitos dos líderes que puderam deixar o país o fizeram; Liu, após um período breve na prisão, teve oportunidades de partir.

Mas, como Tan Sitong, ele optou por permanecer na China, onde sua presença era mais importante. Mesmo após um segundo e mais duro período na prisão, Liu estava determinado a ficar e a continuar fazendo pressão por direitos políticos fundamentais.

Corria o risco não da chegada imediata de soldados, mas do encarceramento inevitável e potencialmente fatal que sucede a todas as pessoas que hoje desafiam o poder do Estado na China.

Não foi uma decisão ativa de morrer, mas a disposição de fazê-lo, se fosse preciso.

CASTIGOS

Um dado perverso é que seus castigos foram intensificados mesmo quando suas ideias adquiriam nuances e moderação.

Seu único biógrafo importante, o ensaísta exilado Yu Jie, escreve que Liu começou a vida como produto típico da era Mao: com pendor por posições extremas e pouco pragmáticas –um "gângster" apaixonado por gestos grandiosos e declarações ultrajantes e rudes. De certo modo, o Liu jovem foi como Tan Sitong, alguém que esperava despertar a China por meio de um susto.

Mas a autorreflexão rigorosa mudou suas ideias e ações. Especialmente nas duas décadas seguintes a Tiananmen, Liu refinou sua ousadia, convertendo-a no que Yu descreve como "integridade, franqueza e coragem de abrir novos caminhos".

Isso não significava que ele evitasse protestos ou ação direta, mas que priorizava a ideia mais realista e –apesar de Liu frequentemente dizer, como provocação, que era a favor da ocidentalização completa– muito confuciana de promover transformações sociais por meio de sua própria vida e ações.

Ele disse que os chineses deveriam estudar "o modo não democrático em que vivemos" e fazer um "esforço consciente para colocar os ideais democráticos em prática em nossos relacionamentos pessoais (entre professores e alunos, pais e filhos, maridos e mulheres e entre amigos)".

A moderação de Liu culminou com a Carta 08, um manifesto por reformas políticas que se fundamentava fortemente nos direitos já consagrados na Constituição chinesa e em tratados da Organização das Nações Unidas internacionalmente reconhecidos.

Liu ajudou a redigir a linguagem minuciosa da Carta 08 e se esforçou para persuadir outros a assiná-la. Como resultado, em 2009 ele foi sentenciado a 11 anos de prisão por "subversão do poder do Estado" [em 2010, ganhou o Nobel da Paz, mas não pôde receber o prêmio].

Não foi igual à sentença de morte de Tan Sitong, mas assinalou o fim da liberdade de Liu –e sobretudo, para ele, de sua capacidade de falar publicamente. Liu tinha 54 anos na época, e era concebível que pudesse ser libertado aos 65 para viver mais uma ou duas décadas.

Ainda que saísse vivo da penitenciária em 2020, é quase certo que teria sido conduzido à prisão domiciliar permanente e afastado da vida pública –sem internet, telefone ou visitantes–, mais ou menos como sua esposa, a poeta Liu Xia, forçada a desaparecer, ou o reformista Zhao Ziyang, secretário do Partido Comunista, que sumiu da vida pública por anos, até finalmente morrer de velhice.

ESQUECIMENTO

As penitenciárias chinesas são brutais, e a prisão domiciliar não seria o destino de Liu. É possível que nunca se conheça a sequência exata dos fatos. No entanto, Liu foi vítima de circunstâncias que sugerem fortemente negligência do governo.

Depois que Liu morreu, um jornal vaticinou que, com o passar do tempo, ele será esquecido. Disse que só são criados heróis "se seus esforços e sua persistência têm valor para o desenvolvimento e as tendências históricas do país".

Este é, de certo modo, o xis da questão: qual é o arco histórico seguido pela China? Quando tomaram o poder, os líderes autoritários chineses justificaram seu reinado pelo misticismo, dizendo que as forças da história escolheram o Partido Comunista.

Então, quando 30 anos de turbulência política e escassez de alimentos chegaram ao fim, na segunda metade dos anos 1970, o partido adotou o papel de uma ditadura desenvolvimentista: ele desenvolvia, logo, governava.

Nos últimos dez anos, porém, esse argumento vem perdendo força, na medida em que o crescimento diminuiu e muitos chineses se acostumaram com a prosperidade.

Hoje, os governantes chineses lançam mão de outras justificativas: dizem que estão ajudando a restaurar tradições destruídas no século 20 e prometem criar uma ordem política e social mais moral. Essa vem sendo a promessa de Xi Jinping, que está quase a meio caminho de um reinado com duração prevista de dez anos.

Mas como conciliar essa nova visão com o tratamento dado a pessoas como Liu? Em um de seus ensaios, Liu disse algo presciente sobre a dissensão. Disse que as pessoas hoje estão menos dispostas a tolerar que o governo encarcere pessoas por expressarem suas opiniões.

Acho que ele tem razão. As pessoas apoiam o governo quando ele prende ou até executa terroristas ou acusados de corrupção. Mas fazê-lo com quem meramente sugere uma via de reforma política? As pessoas podem até sacudir a cabeça e dizer que é típico do Partido Comunista, mas, a não ser entre apologistas do governo, raramente encontrei alguém justificando esse tipo de medida.

OPINIÃO

Talvez seja porque a ideia de reclamar –de oferecer uma crítica construtiva– é uma parte aceita do sistema político chinês há milhares de anos. A China tem uma história longa, e muitos imperadores já rejeitaram conselhos e executaram assessores que ousaram oferecê-los. Mas eles sempre ficaram na história como os vilões. Se Xi está tentando recriar algum tipo de ordem moral tradicional, como se justifica um tratamento tão brutal dado às pessoas unicamente por suas ideias?

É por isso que Liu Xiaobo é importante. Sua vida e sua morte representam o dilema fundamental dos reformistas chineses dos últimos cem anos –não o de como fazer o PIB crescer ou como recuperar territórios perdidos, mas como criar um sistema político mais humano e justo.

Como Tan Sitong, Liu conhecia seu lugar na história. Tan enxergou a China afetada por um ciclo de mal cármico que precisava ser rompido. Para Liu, seu papel como intelectual público era enxergar o futuro e transmitir o que via, não importa qual fosse o custo disso. Como ele escreveu no ensaio "Sobre a Solidão", de 1988, citado em "The Broken Mirror: China After Tiananmen" (Longman; o espelho quebrado: a China depois de Tiananmen):

"Seu destino mais importante, ou melhor, seu único destino, é enunciar pensamentos que se adiantam ao seu tempo. A visão do intelectual precisa se estender para além da gama de ideias e conceitos de ordem aceitos; ele precisa ser aventureiro, um precursor solitário; apenas depois de ele ter avançado muito em relação aos outros é que os outros descobrem seu valor... ele é capaz de discernir os sinais de desastre futuro em uma época de prosperidade, e, com sua autoconfiança, experimentar a aniquilação que se aproxima".

Da "New York Review of Books Daily"

Copyright © 2017 por Ian Johnson

CLARA ALLAIN é tradutora.

IAN JOHNSON, jornalista canadense americano, trabalha na China e ganhou o prêmio Pulitzer em 2001. Lançou neste ano "The Souls of China" (as almas da China; Pantheon/Knopf). Seu texto foi originalmente publicado na "New York Review of Books", dia 14/7.


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