Folha de S. Paulo


Diário do Rio: ainda bem que a crise não acabou com as rodas de samba

Ana Carolina Fernandes/Folhapress
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Roda de samba no bar Bip Bip, em Copacabana, Rio de Janeiro

A ruína do Rio não conseguiu acabar com as rodas de samba. O botequim, com o dono pendurado em dívidas e atendendo moscas, pode fechar as portas. Mas o pessoalzinho permanece ali em frente, na calçada, cantando e batucando. Se não tem bebida no freezer, arruma-se isopor. E, por perto, sempre um cara com prática de fazer um churrasquinho no espeto.

São mais ou menos 140 rodas, da zona oeste à zona sul, com predominância nos subúrbios da zona norte. Existe, por decreto municipal, uma associação para cuidá-las e fortalecê-las, a Rede Carioca das Rodas de Samba.

Na maioria delas, é mais do mesmo. Amadores com tantã, pandeiro e surdo executando músicas manjadas: "Não Deixe o Samba Morrer", "Canta, Canta, Minha Gente", "Tristeza Pé no Chão", "Vou Festejar", "Todo Menino é um Rei" e, não por último, "Trem das Onze", indefectível sucesso paulista importado para o Rio.

Algumas poucas têm repertório próprio, com sambas inéditos. Surge coisa boa, que permanece sem registro. Pensando nisso, Chico Alves, 20 anos de estrada e de rodas, ex-integrante dos grupos Unha de Gato e Sambalangandã, resolveu partir para o disco solo: "Pra Yayá Rodar a Saia" (independente).

O cantor e compositor é um capixaba que mora em Niterói, quase homônimo de Francisco Alves, o Chico Viola (1898-1952). Mas seu estilo sincopado está mais para Cyro Monteiro (1913-1973). O CD reúne parcerias com músicos como Toninho Nascimento, Ivor Lancellotti, Zorba Devagar e Moyseis Marques (que canta na faixa "Sina Insana, Saga Cega"). Que bom que a iaiá rodou a saia.

MEMÓRIA AMEAÇADA

Visite o Cais do Valongo antes que ele acabe. Desde a semana passada patrimônio mundial cultural, título concedido pela Unesco, o sítio arqueológico, considerado símbolo da reurbanização da zona portuária, é um retrato do abandono do Rio de Janeiro depois do evento que é conhecido como a Olimpíada do Calote.

Depois de receberem a notícia da honraria, deram uma ajeitada rápida no local -mas até quando vai durar? Estava abandonado, mal conservado, com dezenas de garrafas plásticas e lixo acumulando-se dentro da área cercada. O cheiro de urina era forte. No entorno, vivem moradores de rua.

Como está abaixo do nível do mar, o monumento necessita de capina e drenagem. A concessionária responsável pelas obras e por cuidar da região abandonou o barco, alegando falta de repasses da prefeitura. Agora, a empresa garante que reassumirá os cuidados de limpeza e manutenção, mas põe a culpa pela dívida em um fundo gerido pela Caixa Econômica Federal.

No jogo de empurra-empurra, um tesouro -mais de 500 mil itens pertencentes a escravos que foram encontrados por arqueólogos em escavações- está armazenado sem segurança em um galpão da Gamboa, que fica na zona central da cidade. O local já foi invadido por traficantes. A memória da Pequena África corre o risco, mais uma vez, de ser apagada.

GUARDIÃO DA CIDADE

Para entrar na onda Lima Barreto -homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), biografado da medula à cor da pele por Lilia Schwarcz em "Lima Barreto - Triste Visionário" [Companhia das Letras, 648 págs., R$ 69,90, R$ 39,90 em e-book]-, um livro auxiliar e bem prazeroso é "O Passeador" [Rocco, 190 págs., R$ 26], de Luciana Hidalgo. Especialista no autor, Luciana cria uma ficção: no início do século 20, o jovem Afonso perambula pelas ruas do Rio, com o passo trôpego e um olhar crítico à reforma urbana. Sentimental, o personagem funciona como guardião de uma cidade que não mais existe.

Se você quiser fazer o mesmo percurso, mas guiado pelos textos do próprio, a dica é o recém-lançado "Lima Barreto - Cronista do Rio" [Autêntica, 240 págs., R$ 44,90]. Organizadas por Beatriz Resende, professora de poética da Universidade Federal do Rio de Janeiro, são 50 crônicas, que vão do centro buliçoso ao subúrbio quase agrário, com parada no Hospício da Saudade, em frente ao mar da Urca. Lima vai até o Leme, aos distantes Leblon e Jardim Botânico, na zona sul. Haja sapatos.

QUE FRIIIIIIIIO!

Lima Barreto - Triste Visionário
Lilia M. Schwarcz
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O carioca gosta de curtir um frio que não existe. Chega o inverno e as vitrines do centro comercial Saara, no centro da cidade, ficam decoradas como se estivéssemos no Alasca. A menina sai de casa com luvas pretas, e o menino, com gorro enfiado na cabeça. Um "bom vinho" substitui o chope. E tome fondue.

Mas, para valer, o figurino continua o mesmo: moletom com capuz, bermuda e chinelo de tiras. É nossa elegância discreta.

ALVARO COSTA E SILVA, 52, o Marechal, é jornalista e colunista da Folha.


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