Folha de S. Paulo


Um Nobel de Literatura e seu quase protesto de cueca contra Berlusconi

Acervo Pessoal
O dramaturgo Dario Fo, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, e a diretora de teatro Neyde Veneziano
O dramaturgo Dario Fo, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, e a diretora de teatro Neyde Veneziano

Era 18 de novembro de 2000. Fazia um frio congelante em Milão. Minha bolsa de pós-doutorado estava na metade, e eu já tinha passe livre para entrar e pesquisar na sede da CTFR (Companhia Teatral Fo Rame), situada na rua Corso Di Porta Romana.

O casal Dario Fo e Franca Rame habitava o andar de cima: um apartamento enorme, antigo, requintado e cheio de quadros criados pelo dramaturgo contemporâneo mais representado no mundo. No andar de baixo, ficava o escritório, onde um grupo de pessoas estava sempre organizando um acervo que parecia infindável.

Naquela manhã gelada, entrei no escritório e não encontrei o silêncio habitual. Pelo contrário: todos falavam muito, riam, ouviam rádio, liam jornais, atendiam telefonemas e consultavam a precária internet da época. O "Corriere della Sera" havia publicado, em primeira página, que Dario Fo seria lançado candidato a "sindaco" (prefeito) de Milão. E era verdade!

Tudo começou porque a esquerda não tinha candidato, e um jornalista perguntou a Dario se ele consideraria a ideia de se candidatar. Ele respondeu: "Por que não?".

Seus amigos estavam preocupados. Afinal, o Prêmio Nobel não deveria se expor daquela maneira, já que com certeza perderia a disputa numa cidade "de direita" como Milão. Se ao menos a candidata fosse Franca Rame, sua esposa... ela era muito respeitada por mães e mulheres italianas.

Naquele momento, Dario e Franca encabeçavam um movimento contra a poluição em Milão, recolhendo assinaturas e participando de manifestações. Isso os colocava no topo da agitada vida política milanesa.

Dias depois, estávamos todos no Palla Vobis -um gigantesco ginásio de esportes que fechou em 2011- para assistir ao espetáculo "Cantico dei Bronchi Intasati" (Cântico dos Brônquios Obstruídos), com Dario Fo. Oito mil pessoas, gritando "Sindaco! Sindaco!" ("Prefeito! Prefeito!"), aguardavam a resposta oficial sobre o lançamento de sua candidatura. Franca conduzia o show, falando sobre os malefícios do ar poluído, embora, nos intervalos, saísse para fumar nas coxias.

Por último, veio Dario. No prólogo, explicou que narraria um fato histórico acontecido em Bolonha, na Idade Média: "La Guerra della Merda"! Contou como cidadãos sofridos e desarmados conseguiram manter todos os poderosos -incluindo os nobres e o clero- aprisionados dentro de seus próprios castelos, ao produzir bombas com excrementos naturais e atirá-las na direção das construções.

Narrou a história em dialeto veneto-bolonhês, que era uma língua quase incompreensível. Sua voz e seus gestos, no entanto, desenhavam toda espécie de gente ingênua, particularizada em situações hilariantes, recolhendo fezes frescas, moles e sólidas, sob cânticos escatológicos que exaltavam a força da matéria fecal.

Ele também interpretava as figuras dos príncipes, do bispo, das damas da corte recebendo aqueles inusitados golpes no rosto, no nariz, nos olhos.

Terminada a história, com a vitória do povo (é claro), Dario não precisou dizer uma única palavra sobre o que foi aquele seu "golpe" político de ator. Todos entenderam que estava renunciando à candidatura para poder lutar ao lado do povo. Também ele havia "jogado merda no ventilador", estimulando a união contra o candidato Gabriele Albertini, da Forza Italia, o partido de Silvio Berlusconi.

Voltei do espetáculo no mesmo carro que Dario e Franca. Rindo muito, ele ameaçou cometer mais um ato político juvenil: sairia só de cueca, caso Berlusconi vencesse as eleições.

A direita ganhou, e ele não saiu para a praça em trajes íntimos. Quando cobrei, ele disse que estava gripado.

NEYDE VENEZIANO, 73, é teórica e diretora de teatro. Seu pós-doutorado, cumprido na Itália em 1999, tem como foco o trabalho do dramaturgo Dario Fo.


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