Folha de S. Paulo


Leia trecho de peça pouco conhecida do filósofo italiano Nicolau Maquiavel

SOBRE O TEXTO Esta página reproduz trechos da comédia "Clízia" (1525), versão de "Casina", de Plauto (c. 230-180 a.C), que por sua vez se baseia em "Apostadores", de Dífilo (c. 360-280 a.C). Os burgueses Nicômaco e Sofrônia criam a jovem Clízia, cobiçada pelo primeiro -que é flagrado ao deitar-se no leito nupcial da moça.

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ATO 2, CENA 5

Alex Kidd
Ilustração

SOFRÔNIA Quem conheceu Nicômaco há um ano e o frequenta agora surpreende-se com a sua mudança, pois era um homem sério, resoluto e respeitoso. Empregava o seu tempo com honradez: levantava-se cedo, ia à missa e provia o desjejum. Depois, se devesse trabalhar nas ruas, no mercado ou com juízes, o fazia; quando assim não fosse, encontrava algum cidadão de juízo honrado para, após, retirar-se em casa, onde revisava seus escritos e reordenava as suas contas. Depois, almoçava em família agradavelmente. Isso feito, conversava com seu filho, aconselhando-o com explicações para que melhor conhecesse os homens -e, com exemplos antigos ou novos, ensinava-lhe a vida. Em seguida, saía para consumir o que restava do dia em atividades sérias e honestas. Ao cair da tarde, a ave-maria o encontrava já em casa. Se fosse inverno, com ele ficávamos brevemente ao pé da lareira. Logo ia ao escritório rever seus negócios. À terceira hora, ceava-se em alegria. Essa sua vida ordenada era um exemplo para todos em casa. Sentia-se vergonha em não o emular. Asseadas e felizes iam as coisas. Porém, desde quando mergulhou na fantasia daquela mulher, descuida de seus negócios, seus poderes diminuem e seus tráficos o arruínam. Grita sempre sem um porquê e entra e sai de casa milhares de vezes sem que se saiba o que faz. Jamais tem hora certa para almoçar ou jantar. Ao falar-lhe, ou não responde, ou responde com despropósitos. Vendo isso, dele os servos zombam, o filho não lhe presta mais reverência, e cada um faz o que quer. Enfim: ninguém duvida da ruína certa desta pobre casa.

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ATO 5, CENA 2

DAMIÃO O que houve esta noite? Que tira e põe de roupas, que abre e fecha de portas, que sobe e desce da cama foram esses que não paravam? Não consegui dormir nem estando no quarto de baixo -tanto que o encontro atordoado aqui em cima... Continua quieto, parece um morto. Que diabos você tem?

NICÔMACO Uh! A dor é tamanha que nem consigo falar. Na escuridão, entrei no quarto em silêncio. Tirei a roupa e deitei-me ao lado da noiva no lugar de Pirro, que foi dormir em outro canto. De acordo com o novo costume dos jovens maridos, pus minhas mãos sobre seus seios, mas ela as refutou. Parti para o beijo; ela me afastou com a outra mão. Então me lancei sobre ela; respondeu com o joelho e me quebrou uma costela. Quando vi que não bastaria forçar, recorri a palavras suaves e amorosas, sussurros e súplicas para que ficasse feliz por me dar prazer: "Ah, minha doce alma, por que me tortura? Por que, meu amor, não concede o que outras mulheres a seus maridos voluntariamente concedem?" Uh! Uh! Uh!

DAMIÃO Enxugue um pouco os olhos.

NICÔMACO Dói tanto que não consigo conter minhas lágrimas. Ela acenou que gostaria de me dizer alguma coisa. Passei a ameaças, vilanias e ao que pretendia fazer. Subitamente, recolheu suas pernas e vibrou-me um par de chutes que, se as cobertas da cama não me houvessem contido, teria voado para o meio do quarto. E não foi tudo. Aqui vem o melhor: em meio à dor e ao sofrimento, cochilei um pouco. Do nada, senti uns cinco ou seis golpes. Meio assonado, tateei-lhe o corpo e toquei algo firme e afiado. Saltei da cama lembrando da faca que Clízia um dia quis cravar em mim. Nesse alvoroço, Pirro despertou. Movido mais pelo medo do que pela razão, exortei-lhe a acender uma luz, pois ela estava armada para matar a nós dois. Pirro correu, voltou com a luz e, em vez de Clízia, vimos Siro de pé sobre a cama, completamente nu -Uh! Uh! Uh!-, que fazia despeitos e zombarias -Uh! Uh! Uh!

DAMIÃO Ha, ha, ha!

NICÔMACO Ha! Esta é a minha desgraça. Que todos riam, que Nicômaco chore! Pirro e Siro diziam maldades, riam, revestiram-se e foram atrás de mulheres. Que me aconselha? Não me abandone, pelo amor de Deus!
DAMIÃO Nada me vem melhor à mente senão que deva deixar tudo nas mãos de sua Sofrônia. Diga-lhe que, daqui por diante, faça de você e de Clízia o que desejar. Ela haverá de pensar em sua honra porque, tratando-se de seu marido, não haverá vergonha da qual não participe. Aí vem ela: fale-lhe. Eu vou já à praça e ao mercado escutar o que dizem. Se ouvir alguma coisa sobre isso, informarei o mais rápido que puder.

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ATO 5, CENA 3

NICÔMACO O que quer?

SOFRÔNIA Para onde vai tão cedo? Sai de casa sem nada dizer à esposa? Como foi a madrugada com... Pirro?

NICÔMACO Não sei.

SOFRÔNIA E quem vai saber senão quem revirou Florença de ponta-cabeça para chegar a esse ponto? Agora que fez tem raiva!

NICÔMACO Deixe-me em paz! Não me torture!

SOFRÔNIA É você quem me tortura, é você quem me deve consolo, é você quem deve trazer estes ovos que me vê levar.

NICÔMACO Talvez fosse muito melhor se não quisesse caçoar de mim. Já chega o que me aprontou o ano inteiro e, mais que nunca, ontem e nesta madrugada.

SOFRÔNIA A última coisa que eu queria era caçoar de você; afinal, foi você quem pediu isso a todos nós e a si mesmo! Não se envergonhou de ter criado, em sua própria casa, uma menina honesta e de -como se faz com as bem-nascidas- querer logo casá-la com um parente inútil e cafajeste para ficar fácil de se deitar com ela! Mas você acha que está tratando com cegos ou com pessoas que não sabem barrar tais planos desonestos? Confesso ter urdido todas as armadilhas em que caiu. Não havia outra maneira de fazer com que se arrependesse senão um vergonhoso flagrante diante de todos; e que fosse tal a vergonha que não pudesse fazer mais nada. E aqui chegamos ao principal: se quiser retornar ao Nicômaco que era um ano atrás, nós também a ele retornaremos. Não se falará de mais nada; e quando se falar, será para consertar o hábito errado.

NICÔMACO Sofrônia minha, faça como deseja. Estou pronto a jamais transgredir suas ordens -desde que não se fale mais nisso.

SOFRÔNIA Se assim fizer, tudo estará acertado.

NICOLAU MAQUIAVEL (1469-1527) foi um filósofo e político italiano. É considerado um dos fundadores do pensamento político moderno.

MAURICIO PARONI DE CASTRO, 56, é diretor de teatro e cinema.

ALEX KIDD, 31, é designer da Folha e escreve no blog 120 BPM, no site do jornal.


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