Folha de S. Paulo


Romance faz mosaico da Índia a partir de protagonista transexual; leia trecho

Miro Spinelli

SOBRE O TEXTO A "Ilustríssima" reproduz a abertura de "O Ministério da Felicidade Absoluta", romance que costura trajetórias de tipos marginalizados na Índia, como uma transexual e um combatente pela libertação da Caxemira. O livro sai em 29/6 pela Companhia das Letras.

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O Ministério Da Felicidade Absoluta
Arundhati Roy
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Ela morava no cemitério como uma árvore. Ao amanhecer, despedia-se dos corvos e dava as boas-vindas aos morcegos. Ao anoitecer fazia o contrário. Entre um turno e outro, conferenciava com os fantasmas dos abutres que assomavam em seus galhos altos. Sentia o suave aperto de suas garras como uma dor em um membro amputado. Acreditava que não estavam totalmente infelizes por terem pedido licença e saído da história.

Quando se instalou ali, suportou meses de ocasionais crueldades como é de esperar de uma árvore, sem reclamar. Não se voltava para ver qual menino havia atirado uma pedra nela, não inclinava o pescoço para ler os insultos rabiscados em sua casca. Quando as pessoas a xingavam –palhaça sem circo, rainha sem palácio–, ela deixava a mágoa se esvair entre os galhos como uma brisa e usava a música do farfalhar das folhas como bálsamo para abrandar a dor.

Foi só quando Ziauddin, o imame cego que um dia conduzira as preces na Fatehpuri Masjid, ficou seu amigo e começou a visitá-la que a vizinhança resolveu que estava na hora de deixá-la em paz.

Há muito tempo, um homem que sabia inglês lhe dissera que seu nome escrito de trás para a frente (em inglês) era Majnu. Na versão inglesa da história de Laila e Majnu, Majnu se chamava Romeu e Laila era Julieta. Ela achou muito engraçado. "Quer dizer que eu fiz um khichdi da história deles?", perguntou. "O que vão fazer quando descobrirem que Laila pode na verdade ser Majnu e Romi era na realidade Juli?" Quando a viu de novo, o Homem Que Sabia Inglês disse que tinha se enganado. O nome dela soletrado ao contrário seria Mujna, que não era um nome e não queria dizer nada. A isso ela respondeu: "Não importa, eu sou Romi e Juli, sou Laila e Majnu. E Mujna, por que não? Quem disse que meu nome é Anjum? Não sou Anjum, sou Anjuman. Sou mehfil, sou uma reunião. De todos e de ninguém, de tudo e nada. Tem mais alguém que queira convidar? Todo mundo está convidado".

O Homem Que Sabia Inglês falou que ela era esperta por ter se saído com essa. Disse que nunca tinha pensado nisso. Ela disse: "Como poderia, com o seu nível de urdu? Está pensando o quê? Que o inglês deixa você automaticamente inteligente?".

Ele riu. Ela riu do riso dele. Compartilharam um cigarro com filtro. Ele reclamou que os cigarros Wills Navy Cut eram curtos e grossos e simplesmente não valiam o que custavam. Ela disse que sempre preferia esses aos Four Square ou aos muito masculinos Red & White.

Agora, ela não se lembrava do nome dele. Talvez nunca tivesse sabido. Ele fora embora fazia tempo, o Homem Que Sabia Inglês, para onde quer que tivesse de ir. E ela estava morando no cemitério, atrás do hospital do governo. Como companhia, tinha seu armário de aço da Godrej, no qual guardava sua música –discos riscados e fitas –, um velho harmônio, suas roupas, joias, os livros de poesia do avô, os álbuns de fotos e uns poucos recortes de jornal que tinham sobrevivido ao incêndio da Khwabgah. Levava a chave pendurada no pescoço por um fio preto junto com o palito de dentes de prata entortado. Dormia em um tapete persa surrado que mantinha trancado durante o dia e desenrolava entre dois túmulos à noite (como brincadeira secreta, nunca os mesmos em noites consecutivas). Ainda fumava. Ainda os Navy Cuts.

Uma manhã, enquanto lia o jornal em voz alta para o velho imame, que evidentemente não estava ouvindo, ele perguntou –fingindo um ar casual: "É verdade que até os hindus da sua gente são enterrados, não cremados?".

Pressentindo problemas, ela se esquivou. "Verdade? O que é verdade? O que é a Verdade?"

Evitando desviar de sua linha de interrogatório, o imame resmungou uma resposta mecânica. "Sach Khuda hai. Khuda hi Sach hai." A Verdade é Deus. Deus é a Verdade. O tipo de sabedoria encontrado nos para-choques de caminhões rugindo pela estrada. Em seguida, apertou os olhos verdecegos e perguntou num verdissimulado sussurro: "Me conte, a sua gente, quando morre, onde é enterrada? Quem lava os corpos? Quem faz as orações?".

Anjum não disse nada durante um longo tempo. Depois se inclinou para a frente e sussurrou de volta, nada árvore: "Sahib imame, quando as pessoas falam de cor –vermelho, azul, laranja, para descrever o céu do anoitecer, ou o nascer da lua durante o Ramzaan–, o que passa pela sua cabeça?".

Tendo se ferido assim, profundamente, quase mortalmente, os dois ficaram sentados em silêncio lado a lado no túmulo ensolarado de alguém, sangrando. Por fim, foi Anjum quem quebrou o silêncio.

"Me diga o senhor", disse ela, "o senhor é que é o sahib imame, não eu. Aonde vão as aves velhas para morrer? Elas caem do céu em cima da gente feito pedras? A gente tropeça no corpo delas pelas ruas? Não acha que o que Tudo Vê, o Todo-Poderoso que pôs a gente nesta terra, tomou as devidas providências para nos levar embora?"

Nesse dia, a visita do imame terminou mais cedo que o normal. Anjum ficou olhando quando ele foi embora, tap-tap-tap por entre os túmulos, a bengala-olho fazendo música ao encontrar as garrafas de bebida vazias e as seringas descartadas que pontuavam seu caminho. Ela não o deteve. Sabia que ele ia voltar. Por mais elaborado que fosse o disfarce, ela reconhecia a solidão quando a encontrava. Sentiu que por alguma estranha via torta ele precisava da sombra dela assim como ela da dele. E aprendera por experiência que a Necessidade era um depósito capaz de abrigar uma quantia considerável de crueldade.

Mesmo que a saída de Anjum da Khwabgah tivesse sido nada cordial, ela sabia que os sonhos e segredos de lá não seriam traídos só por ela.

ARUNDHATI ROY, 55, escritora, é a primeira indiana a vencer o Man Booker Prize, por "O Deus das Pequenas Coisas" (Companhia das Letras), em 1997.

JOSÉ RUBENS SIQUEIRA, 71, é tradutor, diretor teatral, cenógrafo e figurinista.

MIRO SPINELLI, 27, artista visual, apresenta performance no MAC Niterói na sexta (16) e no Itaú Cultural, em SP, em 21/6.


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