Folha de S. Paulo


Feira literária britânica que inspirou a Flip celebra seus 30 anos

Paul Tompkins
Vista da cidade de Hay-on-Wye
Vista da cidade de Hay-on-Wye

Com seus 1.500 habitantes, praticamente um vilarejo no País de Gales, a poucos quilômetros da fronteira com a Inglaterra, Hay-on-Wye (Y Gelli, em galês) se tornou um pitoresco centro mundial de circulação e debate de livros e ideias –uma história que acaba de completar 30 anos.

O Hay Festival –certamente a mais charmosa festa literária do mundo, inspiradora direta da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty)– chegou à 30ª edição com uma programação de mais de 500 eventos reunindo autores, pensadores e artistas gráficos. O banquete intelectual se estendeu por dez dias.

Em meio às mais tumultuadas eleições gerais de que se lembram duas gerações de britânicos, talvez três, a festa começou no imediato pós-atentado em Manchester e amanheceu no domingo passado, um chuvoso último dia de bate-papos e palestras, abatida pela notícia do ataque a Londres.

Se, nessas circunstâncias, declarações contundentes e punhos erguidos seriam praticamente inevitáveis, vale lembrar que Hay sempre foi política –em 2003, passei um dia inteiro ouvindo debates acalorados sobre a legitimidade da então recente intervenção anglo-americana no Iraque.

Uma curiosa conexão entre aquele momento e o atual: com justificativas fabricadas sobre as inexistentes armas de destruição em massa de Saddam Hussein, não estariam Blair, Bush e companhia plantando as sementes do atual sequestro da política pela turma dos "fatos alternativos"?

Fato comprovado é que, nessas três décadas, nunca um tema foi tão presente no debate público a ponto de levar a Hay dois proeminentes jornalistas –Matthew D'Ancona, colunista do jornal "The Guardian", e Evan Davis, âncora do influente "Newsnight", misto de telejornal e programa de entrevistas exibido nos finais de noite na BBC2– para lançar livros com o mesmo título: que outro senão "Post-Truth" [pós-verdade]?

VIDAS SECRETAS

Já o escritor e jornalista Andrew O'Hagan esteve em Hay para falar sobre "The Secret Lives: Three True Stories" [vidas secretas: três histórias verdadeiras, Faber & Faber], volume no qual narra as aventuras de dois personagens dos mais intrigantes nesta era de obscuras relações na web: Julian Assange, chefe do Wikileaks de quem O'Hagan foi "ghostwriter", e Satoshi Nakamoto, inventor de existência tão etérea quanto a de sua criação, o bitcoin.

O terceiro perfilado do livro é Ronald Pinn –na verdade um personagem inventado pelo próprio O'Hagan a partir do roubo da identidade de um rapaz morto na década de 1980, aos 20 anos. O autor o ressuscitou na internet, dando-lhe uma segunda "vida", e, ao final, precisou procurar a mãe do jovem para informá-la do retorno do falecido a este mundo: um lugar estranho em que identidades virtuais podem até figurar em passaportes reais, como o novinho em folha que O'Hagan tirou como Ronald.

SALAFISTAS FEMINISTAS?

Mais palpável, embora não menos intrigante, é a identidade assumida pelas 36 mulheres muçulmanas entrevistadas em "The Making of a Salafi Muslim Woman" [a criação de uma muçulmana salafista, OUP], de Anabel Inge.

A jovem antropóloga passou dois anos e meio imersa num grupo feminino de estudos do salafismo, interpretação radical do islã a partir da qual as personagens do relato justificavam, entre outras restrições, cobrir-se da cabeça aos pés quando em público.

Inge surpreendeu ao enumerar algumas de suas descobertas: são moças de menos de 30 anos, universitárias ou aspirantes ao ensino superior, cuja autoimagem inclui até um inusitado apelo feminista: se andam cobertas, é também porque não querem ter seus corpos objetificados, segundo explicaram à pesquisadora. A plateia progressista de Hay não pareceu totalmente convencida.

HERÓI DOS TRABALHADORES

O penúltimo dia de festa teve Bernie Sanders, o senador democrata que empolgou parte da esquerda nos Estados Unidos com sua pré-candidatura anti-establishment à Presidência, derrotada.

Mas, no quesito esquerda, foi o cineasta Ken Loach a grande estrela, encerrando o festival com uma palestra seguida de bate-papo em que, como um autêntico herói da classe trabalhadora, não economizou nas declarações contundentes: "Agora o jogo é de vida ou morte: não há opção além do socialismo se queremos que o planeta sobreviva", disse o diretor de "Eu, Daniel Blake".

A imagem que fica de Hay 2017 é emblemática: diante da plateia que lotava a tenda central e o ovacionava de pé, o velho cineasta acena, o punho erguido.

CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e em Cambridge, é jornalista e tradutor.


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