Folha de S. Paulo


Burlar leis com o 'jeitinho' não é especialidade só do Brasil

RESUMO Autor rebate a ideia de que o proverbial "jeitinho brasileiro" seja um traço distintivo da cultura nacional. De forma mais ou menos estruturada, o ato de burlar leis é corriqueiro em diversas partes do mundo, mesmo em sociedades tidas como severas na observância das normas, como a Alemanha.

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Não deixa de ser engraçado, ou ao menos pitoresco, ver brasileiros encherem a boca para falar que "o Brasil não é para principiantes", frase tantas vezes atribuída a Tom Jobim. Porque o Brasil está longe de ser o único país que pode dizer isso de si mesmo. Na verdade, será sempre bom desconfiar da especificidade da maioria das coisas que damos como especificamente brasileiras.

A frase pegou por ao menos dois motivos. Primeiro, porque é muito boa: uma construção sintética, direta, sem meios tons, com um charme "profissional". E certamente encontra correspondência fatual em nossa experiência, tanto histórica quanto cotidiana. Um país cheio de ambiguidades, contradições, paradoxos, coisas que parecem inusitadas e particularmente nossas.

Segundo, porque ela afirma uma suposta singularidade brasileira no mundo.

Como disse, entretanto, a observação não se aplica só ao Brasil. Podemos muito bem dizer que a Itália não é para principiantes. Também não me parece que a Rússia, a Alemanha, a Nigéria, o Egito, a China e o México o sejam. Cada um à sua maneira, diversos países não são para principiantes.

É preciso desconfiar também de certas singularidades nacionais apontadas em estudos eruditos, em livros de intelectuais que fazem sucesso entre intelectuais, os quais cristalizam perigosamente leituras sobre o Brasil que deveriam ser relativizadas.

Exemplo disso é a tese de Roberto Schwarz acerca das "ideias fora do lugar", apontando um descompasso nosso entre a adoção do ideário liberal e a manutenção do escravismo –tese que merece ressalvas.

Ela pressupõe a existência de algum espaço perfeito em que princípios jurídicos e práticas sociais tenham sido feitos um para o outro –o que não passa de ficção teórica, como sublinhou Bernardo Sorj em "A Nova Sociedade Brasileira".

Além disso, também nos Estados Unidos liberalismo e escravidão conviveram por muito tempo, praticamente 90 anos. A Declaração da Independência é de 1776, enquanto a emenda constitucional que aboliu o regime escravista data de 1865.

JEITINHO

Mas quero me demorar aqui num exemplo que atravessa classes sociais, faixas etárias, níveis educacionais, distinções de cor e sexo, como suposto signo identitário nacional: o célebre "jeitinho brasileiro", a que todos parecem ter recorrido pelo menos uma vez na vida –e, por isso, transformado na mais democrática de todas as nossas contravenções.

Vamos, primeiro, definir "jeitinho", para não derrapar à maneira de Francisco de Oliveira, que, em "Jeitinho e Jeitão: Uma Tentativa de Interpretação do Caráter Brasileiro" (revista "piauí", nº 73, em 2012), entrega-se a tal debordamento conceitual que faz com que a noção perca qualquer sentido, uma vez que passa a ter todos.

Assim, a bossa nova é tratada como "um jeitinho de escapar das convenções musicais à la Vicente Celestino". Brasília se vê reduzida a um jeitinho da classe dominante para implantar uma capital "nos ermos do Planalto Central".

Bota-se na conta do jeitinho e da malandragem, também, a promoção da imigração para enfrentar o fim do escravismo (e dane-se o Florestan Fernandes que tão bem flagrou o desvirtuamento do movimento abolicionista, em "A Revolução Burguesa no Brasil", publicado em 1974).

Até a CLT de Getúlio Vargas é definida como um jeitinho para civilizar as relações trabalhistas no Brasil. Ou seja, jeitinho vira uma espécie de Bombril conceitual: é multiuso. Ficamos girando em falso.

De outra parte, jeitinho e malandragem não são a mesma coisa. Não devemos fundir os fenômenos. Jeitinho não implica trapacear o próximo, nem vender gato por lebre. O malandro recorre ao jeitinho, mas não é a encarnação desse, como Oliveira defende.

Vale dizer, há conexões entre jeitinho e malandragem, mas também diferenças. Por exemplo: não há lugar para a figura do otário no espaço interpessoal do jeitinho. O que se quer driblar é a norma, a regra, não o outro.

No extremo oposto do espectro ideológico, Roberto Campos viu com mais clareza. Em sua "Sociologia do Jeito" (ensaio na revista "Senhor", publicado em 1960), o jeitinho se explica pela relação entre lei e fato social, que diferencia os latinos dos anglo-saxões. Para estes últimos, a lei é expressão de uma práxis, fundada no costume, a partir de uma coleção de precedentes. Já entre os latinos, a legislação é um conjunto formal de regras apriorísticas que, em vez de nascer das condutas sociais, quer modelar comportamentos.

É desse desencontro entre o formalismo da lei e o comportamento real das pessoas que nasce o jeitinho –modo de contornar uma normatividade jurídica que se quer impor de fora à vida social.

O curioso é que, em meados do século que passou, a tese era a de que o jeitinho decorria do atraso de nossa formação e de nossas estruturas. Estaria condenado a desaparecer à medida que o país experimentasse processos de atualização histórica. Não foi o que aconteceu.

O jeitinho não era mero reflexo de uma determinada conjuntura sociotécnica. Era coisa mais enraizada. As relações pessoais continuavam estruturando nossas vidas, nosso cotidiano etc. Vamos então definir assim: o jeitinho é um modo de interpessoalizar um espaço impessoal, com vistas a burlar a norma ou a lei.

UNIVERSAL

Por fim, também o jeitinho, como as "ideias fora do lugar", não é uma especificidade brasileira. É certo que ninguém, depois de ouvir um rotundo "nein" de um funcionário da burocracia alemã, vai pensar que é possível contorná-lo na base do jeitinho.

Ao mesmo tempo, sempre desconfiei dessa especificidade nacional, perguntando se não haveria jeitinho na Turquia, por exemplo. Recentemente, levantei essa bola nas redes sociais e recebi respostas que transformaram minha desconfiança em certeza.

Uma senhora falou da existência do jeitinho na Sérvia e no sul da Índia. E disse uma coisa interessante: afirmamos a especificidade do jeitinho porque nossa referência é a Europa ocidental.

Parece, contudo, que mesmo por lá o jeitinho dá o ar de sua graça. A professora Marília Mattos lembrou, a propósito, um velho ditado espanhol: "hecha la ley, hecha la trampa" [com a lei nasce a brecha].

O jeitinho não é a regra, como no Brasil, mas é possível encontrá-lo também na Alemanha, segundo depoimento que a historiadora Márcia Cristina Fráguas me deu:

"Posso te contar da minha percepção em Berlim, onde vivi em 2004, estudando alemão e audiovisual. Os alemães têm noção de quão difícil é o idioma deles. Em Berlim, quando percebem que um estrangeiro se esforça para aprender e tem bons resultados, imediatamente se forma um vínculo afetivo".

Ela continuou: "Diversos jeitinhos me foram oferecidos, desde burlar meios legais para que eu pudesse ficar no país (um dos meus professores queria atestar para a imigração que eu lecionava português num curso de idiomas que ele dirigia, o que era mentira), passando pela oferta de uma professora de utilizar sua relação com o reitor de uma universidade em Hamburgo para que eu pudesse assistir a aulas como ouvinte, burlando uma regra específica da instituição".

E concluiu: "Enfim, os berlinenses com quem convivi se colocavam à minha disposição para entortar os trâmites burocráticos locais".

Para finalizar, o antropólogo Mércio Gomes, autor de "Os Índios e o Brasil" (Contexto, 2012), entrou na conversa fazendo uma distinção entre jeitinho tático ("um atalho diante de dificuldades"), que é universal, e jeitinho estratégico (no sentido de estratégia de sobrevivência; modo estruturado de burlar regras e normas sociais), encontrável num número bem mais reduzido de países, geralmente muito desiguais socialmente e onde não há um sentimento de consenso cultural.

"Países como Brasil, México, Rússia e outros aplicam esse jeitinho estratégico. Países que têm consenso sobre suas regras, em geral as sociedades mais ou menos igualitárias, usam o jeitinho tático com muita competência."

Penso que, nesse caso, fazemos tanta questão de alimentar supostas especificidades nacionais, distinguindo-nos das demais nações, porque certas sensações de singularidade, mesmo que meramente imaginárias, reforçam e sublinham a identidade e o narcisismo de uma coletividade, ao delinear com alguma clareza, ainda que apenas no império das aparências, o seu lugar no mundo.

O fato é que, além de nós, também a Inglaterra –e a Argentina, a Espanha, a Alemanha e a Itália– se vê como "o país do futebol".

Ou seja: melhor a gente prestar mais atenção no mundo, em vez de, olhando somente para si mesmo, achar que é mais singular do que realmente é. Existem singularidades brasileiras, é claro. Mas não somos tão diferentes dos outros quanto às vezes queremos acreditar.

ANTONIO RISÉRIO, 63, antropólogo, ensaísta e romancista, é autor de "A Cidade no Brasil" (ed. 34) e "Que Você É Esse?" (Record).


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