Folha de S. Paulo


Jonathan Safran Foer volta ao romance após hiato de 11 anos; leia trecho

Sebastian Lucrécio
Jonathan Safran Foer
O escritor americano Jonathan Safran Foer

SOBRE O TEXTO Este trecho foi retirado do capítulo "Absorver ou Absolver", de "Aqui Estou". A obra marca a volta ao romance do escritor americano Jonathan Safran Foer, um dos mais proeminentes de sua geração, após um hiato de 11 anos. O livro conta a história de uma família judia de classe média alta vivendo em Washington quando um terremoto de grandes proporções atinge Israel. O lançamento, da editora Rocco, estará disponível a partir de 22/5.

*

Isaac deveria estar em estado avançado de decomposição dentro da terra, mas ainda continuava fresco dentro da gaveta de uma geladeira em Bethesda. Apenas para Isaac o fim do tormento poderia significar a extensão do tormento. Seu último desejo – declarado tanto no testamento quanto em inúmeras conversas com Irv, Jacob e quem mais estivesse envolvido com a tarefa – era ser enterrado em Israel.

– Mas por quê? – Jacob tinha perguntado.

– Porque é para onde vão os judeus.

– Na folga de Natal. Não para a eternidade.

E quando Sam, que estava acompanhando, apontou que por lá ele receberia muito menos visitantes, Isaac apontou que "os mortos estão mortos" e visitas são a última coisa que passam por suas cabeças com cérebros mortos.

– Você não quer ser enterrado com a vovó e o resto da família? –Jacob quis saber.

– Vamos todos nos reencontrar quando chegar a hora.

– Mas qual o sentido disso? – Jacob não perguntou, porque algumas vezes fazer sentido não faz muito sentido. Um último desejo é uma dessas vezes. Isaac tinha providenciado o lote duas décadas antes (mesmo na época foi caro, mas ele não se importava em ter uma sepultura pobre), então tudo que era necessário para realizar seu último e mais duradouro desejo era colocar seu corpo dentro de um avião e pensar na logística do outro lado.

Mas quando chegou a hora de colocar o corpo de Isaac na caixa de correio, a logística era impossível: todos os voos estavam proibidos de decolar, e quando o espaço aéreo foi reaberto, os únicos corpos com entrada permitida pelo país eram os que estavam dispostos a morrer.

Assim que terminou a janela de tempo ritualística para o enterro-em-um-dia, não havia mais grande pressa em descobrir uma solução. Mas isso não significa que a família era indiferente ao ritual judaico. Alguém precisava estar com o corpo durante todo o intervalo entre a morte e o enterro. A sinagoga tinha uma equipe para isso, mas, enquanto os dias foram passando, o entusiasmo por servir de babá para o cadáver foi diminuindo, e cada vez mais a responsabilidade foi transferida para os Bloch. E essa responsabilidade precisava ser negociada com a responsabilidade de ser hospitaleiro com os israelenses: Irv poderia levá-los até Georgetown, enquanto Jacob ficava sentado ao lado do corpo de Isaac e em seguida, à tarde, Jacob poderia leválos ao Museu Aeroespacial para assistir a Voar! Na tela IMAX, engolidora de perspectiva, enquanto Deborah teria a experiência exatamente oposta com o corpo de Isaac. O patriarca com quem falavam sete minutos por semana via Skype a muito custo tinha se tornado alguém que visitavam diariamente. Por alguma singular magia judaica, a transição de vivo para morto transformava os perpetuamente ignorados em jamais esquecidos.

Jacob aceitou ficar com a carga mais pesada, pois se considerava o mais apto, e também por ser quem mais desejava fugir de outras responsabilidades. Servia como acompanhante de shemirá – uma expressão da qual nunca tinha ouvido falar antes de se tornar um coreógrafo de acompanhantes de shemirá – pelo menos uma vez por dia, em geral por várias horas seguidas. Nos primeiros três dias, o corpo foi mantido em cima de uma mesa, debaixo de um lençol, na funerária judaica. Depois foi transferido para um espaço secundário nos fundos, e por último, ao final da semana, até Bethesda, para onde corpos não enterrados vão morrer. Jacob nunca ficou a menos de três metros de distância e aumentava o volume dos podcasts a um nível destruidor de capacidades auditivas, e tentava não respirar pelo nariz. Levava livros, respondia e-mails (precisava ficar do outro lado da porta para conseguir sinal), chegou até a escrever um pouco: COMO ENCENAR DISTRAÇÃO; COMO ENCENAR FANTASMAS; COMO ENCENAR LEMBRANÇAS SENTIDAS E INCOMUNICÁVEIS.

Domingo, no meio da manhã, quando as reclamações ritualizadas de Max sobre não ter nada para fazer se tornaram exasperantes a um nível intolerável, Jacob sugeriu que Max participasse do acompanhamento de shemirá, pensando Isso vai fazer você sentir gratidão pelo tédio que sente. Aceitando o blefe, Max concordou.

Foram saudados na porta pela acompanhante de shemirá anterior – uma mulher do shul, muito idosa, que inspirava tantos calafrios e evocava tanta ausência que poderia ter sido confundida com um dos mortos se a maquiagem exagerada não desse a pista: apenas judeus vivos são embalsamados. Trocaram acenos de cabeça, ela deu as chaves da porta de entrada a Jacob lembrando que absolutamente nada além de papel higiênico (e número dois, claro) poderia entrar na privada e, com um pouco menos de pompa e circunstância do que no Palácio de Buckingham, a troca de guarda se efetivou.

– Que cheiro horrível – Max comentou, sentando diante da mesa comprida da recepção, feita de madeira de carvalho.

– Quando preciso respirar, faço isso pela boca.

– Parece que alguém peidou dentro de uma garrafa de vodca.

– Como você conhece cheiro de vodca?

– Vovô me fez cheirar.

– Por quê?

– Pra provar que era cara.

– O preço não seria suficiente?

– Pergunta isso pra ele.

– Mascar chiclete também ajuda.

– Você tem chiclete?

– Acho que não.

Aqui Estou
Jonathan Safran Foer
l
Comprar

Em seguida, conversaram sobre Bryce Harper e sobre por que, apesar de o gênero estar tão cansado que era incapaz de erguer um dedo de originalidade, filmes de super-heróis ainda eram bem legais, e como costumava acontecer, Max pediu ao pai que contasse mais uma vez histórias sobre Argos.

JONATHAN SAFRAN FOER, 40, é escritor americano. Assinou romances como "Tudo se Ilumina" (2002) e "Extremamente Alto e Incrivelmente Perto" (2005)

DANIEL PELLIZZARI, 43, é tradutor e autor de "Digam a Satã que o Recado Foi Entendido" (Companhia das Letras)

MAÍRA MENDES GALVÃO, 36, é tradutora, poeta e editora no Brasil para a revista "Asymptote"


Endereço da página:

Links no texto: