Folha de S. Paulo


Diário de Nova York: Racismo nas ruas, quiproquó no museu

Alina Heineke/AP
A group of museum-goers examine a painting entitled
Grupo observa obra 'Open Casket', da artista Dana Schutz, na Bienal do Museu Whitney, em Nova York

"Não acredito que a temporada já começou." Aqui no norte dos Estados Unidos, a frase é, para os aficionados de beisebol, uma referência à primavera.

Em Washington, a estação teria chegado com o primeiro arremesso da bola feito pelo presidente, mas neste ano a Casa Branca declinou o convite com a alegação de que a agenda estava cheia, rompendo uma tradição de mais de cem anos. Trump também não correu o risco de ser vaiado no estádio Nationals Park, na capital do país, onde recebeu apenas 4,1% dos votos.

Alguém diria que pouco importa, já que Trump é fã mesmo dos Yankees, de Nova York. O fato é que o índice de aprovação do seu governo, de 36%, segundo a última pesquisa nacional da Gallup, feita em março, contrasta com as reações dos que se identificam com seu discurso xenófobo e com os crimes de ódio que ocorrem em ruas de todo o país.

Jessica Rinaldi - 2006/Reuters
FILE PHOTO: Donald Trump throws the first pitch before the start of the second game of an American League double header between the Boston Red Sox and New York Yankees MLB baseball game at Fenway Park in Boston, Massachusetts, in this August 18, 2006 file photo. The White House announced on March 29, 2017 that U.S. President Donald Trump has declined to throw out a ceremonial first pitch at next weekÕs Washington NationalsÕ home opener on April 3. REUTERS/Jessica Rinaldi/Files ORG XMIT: WAS150
Donald Trump em jogo do Boston Red Sox contra o New York Yankees

ESPETÁCULO

É sabido que um episódio de violência terá repercussão muito maior se acontecer por aqui.

Foi o caso do supremacista branco que, há menos de um mês, pegou um ônibus em Baltimore disposto a matar quantos negros pudesse na Times Square, zona central de Manhattan.

Obcecado por negros que se relacionam com mulheres brancas, como confessou mais tarde à polícia, o veterano de guerra James Harris Jackson, 28, golpeou fatalmente com uma espada o morador de rua Timothy Caughman, 66, que reciclava latas e colecionava autógrafos. A vítima morreu horas depois no hospital. Jackson foi preso e não assassinou mais ninguém.

SILÊNCIO

Trump não se pronunciou a respeito. Manteve um silêncio impassível, pactuando com criminosos racistas na sua própria cidade, mas exibiu comoção diante da barbárie do ataque químico do último dia 4, na Síria. Tanto assim que se sentiu autorizado a lançar, em retaliação, 59 mísseis Tomahawks dois dias depois contra o regime do ditador Bashar al-Assad.

Imagino Trump no estádio entre os torcedores, vestindo o boné dos Yankees, o olhar analítico fixado no jogo e, na mão, um pacote de Cracker Jack (pipoca clássica em dia de beisebol).

ARTE BRANCA

Há uma relação midiática entre o ataque contra Timothy Caughman e a polêmica gerada pela pintura da americana Dana Schutz, exposta na Bienal do Museu Whitney, até 11 de junho.

A obra é inspirada no caso do adolescente negro de 14 anos Emmett Till, que, em 1955, foi torturado e morto por supremacistas brancos no Mississippi.

Para conscientizar as pessoas, a mãe da vítima manteve o caixão aberto no velório, expondo o rosto dilacerado do filho. A pintura de Schutz captura esse momento.

Reprodução
Dana Schutz, â€Open Casket†(2016), in the 2017 Whitney Biennial
'Open Casket' (caixão aberto), de Dana Schutz

O protesto contra a obra "Open Casket" (caixão aberto) começou no dia inaugural da exposição, com um artista vestindo uma camiseta em que se lia "Black Death Spectacle" (espetáculo da morte negra). Ele contestava, como afirmava na camiseta, o direito da artista branca de transformar a morte de um jovem negro em um espetáculo.

A foto foi parar em uma rede social e incitou mais protestos, resultando em uma carta aberta assinada pela artista britânica Hannah Black, que pediu a remoção e a destruição do quadro, por explorar "com fins lucrativos e de diversão" o sofrimento negro. Em resposta, Schutz disse que jamais venderia a obra.

No início de abril, o Whitney fechou a ala onde o quadro estava exposto. Segundo o museu, as paredes corriam risco de infiltração depois de uma chuva forte. Voltei no dia 5, data em que reabririam a sala, mas ela continuava fechada. Parei para observar "Real Violence", do artista Jordan Wolfson. No vídeo de realidade virtual, ele aparece acertando a cabeça de alguém em uma rua de Manhattan com um taco de beisebol.

Já fora do museu, penso se a arte feita para chocar ainda conserva algum valor.

LUCRECIA ZAPPI, 44, jornalista e escritora, é autora de "Onça Preta" (Benvirá)


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