Folha de S. Paulo


Livro de roteirista de Tarkóvski ganha tradução; leia trecho inédito

SOBRE O TEXTO O trecho reproduzido acima está no romance "Salmo" (1975), do ucraniano Friedrich Gorestein. Crítica severa ao cristianismo e a suas fundações morais, a obra narra a passagem mítica do Anticristo pela URSS entre 1933 e 1973. Nesse intervalo, ele testemunha episódios cruciais da história soviética, como a fome dos anos 1930, a invasão das tropas alemãs na Segunda Guerra e a censura stalinista. A Kalinka lança a edição brasileira em maio.

Gabriel Cabral/Folhapress
São Paulo, SP, Brasil, 11-04-2017: Reprodução de obra de Bruno Faria. (foto Gabriel Cabral/Folhapress)
Ilustração de Bruno Faria

– A colheita passou, o verão terminou, e nós não estamos salvos – assim falava o profeta Jeremias, em um dia nublado como esse, vislumbrando os campos desertos da terra prometida que, no crepúsculo de outono, estavam tão desabitados e desolados como o céu escuro e ameaçador que pairava sobre eles. – Olhei para a terra e ela estava devastada e vazia, olhei para os céus e não havia luz neles.

Realmente, da janela de uma antiga taberna, agora a casa de chá do colcoz¹ "O Lavrador Vermelho", via-se aquela mesma terra e aquele mesmo céu que dilaceraram o coração cheio de compaixão do profeta judeu, o coração de um pessimista-humanista, um cantor aflito de salmos.

É preciso notar, de passagem, que, se durante os mais de dois mil anos da atual civilização quase não se alterou o caráter do otimista, não lhe diminuindo o entusiasmo aéreo e superficial nem lhe aumentando a sabedoria, o caráter do pessimista modificou-se por completo... Perdendo o lirismo, ele adquiriu uma inspiração filosófica e um desprezo soberbo pela vida... [...]

Nessa noite, os fregueses da casa de chá eram da parte mais abastada da vila, para os tempos de então: os tratoristas recordistas², que se reuniram depois de um encontro regional, por ocasião do qual trouxeram arenques e pãezinhos doces ao bufê e sementes de girassol e balas à casa de chá. Por isso desde manhã os pedintes haviam dado de importunar os tratoristas. Se os pedintes viessem somente da vila, Chagaro-Petróvskoie, não seria um grande problema. Mas eles vinham de todos os lados: de Kom-Kuznetsóvskoie, do povoado de Lípki e dos sítios...

– Senhor! Jesus Cristo... Filho de Deus...

Esse refrão, proferido ora por uma voz sonora de criança, ora por um murmúrio enrolado de velho, acompanha a tradicional má colheita e a fome na Rússia desde o início dos tempos. Na época de Boris Godunóv³ e em momentos mais tardios descritos por Lev Tolstói e Korolenko, pais e mães e todos os trabalhadores devastados e famintos acabavam sustentados por suas crianças e por seus velhos, vivendo do nome de Jesus. Korolenko chamou uma vez essa mendicância da Rússia de grandiosa força popular. [...]

Antes nem todos davam esmola por ter bom coração, mas por medo do pecado. Agora todos os pecados divinos foram revogados pelo novo poder, e, nas igrejas, onde, havia pouco, as bocas indiferentes dos sacerdotes transformaram verdades vivas em frivolidades, sentia-se cheiro de porão úmido, de álcool vindo da palha apodrecida, e de batata mal guardada. Jesus Cristo, da tribo de Judá, foi abolido e sua imagem substituída em todos os lugares: foi retirada das paredes dos espaços públicos, sendo raspad0 e coberta. Mas mendigava-se como antes, em nome de Cristo, porque, para os mendigos, nada mais foi inventado. Desde tempos imemoriais, os miseráveis, por estarem no patamar mais baixo da sociedade, podem usar para seu sustento algo mais elevado, que aja sobre a insensibilidade de seus irmãos. Quem seria capaz de mendigar em nome do Conselho dos Comissários do Povo sem ser considerado um provocador, passível de punição pela GPU? Por isso o nome de Cristo foi conservado pela mendicância como um anacronismo, à semelhança de algumas marcas de cigarro pré-revolucionárias.

Assim, quando em um fim de tarde soou o refrão habitual na casa de chá: "Senhor! Jesus Cristo... Filho de Deus", poucos levantaram as cabeças das rodas de conversa, dos copos de chá de cenoura e balas de goma, ou do verdadeiro festim que rumorejava em volta da mesa do chefe da brigada. Lá havia uma garrafa de álcool diluído e, ao lado do arenque, pratos com fatias de um toucinho bem rosado...

Um pouco antes, haviam dado esmola a dois jovens irmãos, que cantaram e dançaram a ciganinha, depois a um velho, e ainda a uma mulher segurando um bebê... A miséria é inoportuna, não tem tato nem consciência, e sua vontade é arrancar o máximo para si, passando para trás o irmão miserável...

Visivelmente, a garota que entrou na casa de chá não queria saber se as pessoas estavam cansadas no fim do dia, se o que estavam comendo e bebendo havia sido obtido à custa de trabalho árduo, da sorte ou de privilégios, ou se os miseráveis as aborreciam como mosquitos sugando o sangue de um cavalo de carga.

Em geral, há algo de atrevido e exigente na mendicância das crianças, ao contrário da mendicância dos adultos e, especialmente, dos velhos. Em primeiro lugar, a criança que mendiga raramente chora em seu esforço de apiedar e, quando o faz, isso soa claramente falso, evidenciando que foi ensinada a fazê-lo e que não se trata de choro espontâneo. Em segundo lugar, agradece a esmola sem prazer ou, com frequência, sequer agradece, pega-a como se tivesse recebido o que lhe pertence, como se todos em volta lhe devessem algo ou fossem seus pais. Além disso, na casa de chá não havia mulheres, e os homens dariam esmola com mais vontade se o mendigo não lhes causasse pena, mas alegria, como os dois irmãos, ao dançarem a ciganinha, generosamente fizeram. Mas a garotinha, ao que parece, não fazia tempo que mendigava: não divertia o público, apenas andava por entre as mesas pronunciando o nome de Cristo de maneira monótona e com uma voz sonora, como uma cantiga infantil. Ela tinha um rosto típico de camponesa, tranquilo; nos olhos cinzentos havia algo como que entre a estupidez e a bondade, mas nos lábios roliços um quê de mulher, o que não poderia ser compreendido por ela mesma, mas por um olhar alheio e experiente. Rostos assim geralmente ficam cheios e fartos por pouco, por um pedaço de pão ou uma fatiazinha de toucinho, pois, evidentemente, fazia tempo que não viam nem migalhas disso. Essas migalhas surgiam fartamente sobre a mesa do chefe da brigada, mas dessa mesa rica a menina fora expulsa, e, nas outras mesas, mais pobres, ninguém lhe dera atenção, sequer lhe ofereceram uma bala ou um punhado de sementes de girassol. Como é sabido, havia motivos para isso: a população vivia em dificuldades, estava cansada de mendigos e não tinha mais medo do pecado. [...]

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Notas dos tradutores:

1. A parábola se passa em 1933, durante a implantação da coletivização na URSS, quando as propriedades dos camponeses foram agrupadas em cooperativas (colcozes)

2. No original, udárniki (de udar, "golpe", "choque"), trabalhadores soviéticos que alcançavam os melhores resultados em suas tarefas, que batiam recordes de produção

3. Boris Godunóv (1551-1605), regente e depois tsar de Rússia

4. Vladímir Korolenko (1853-1921), escritor e jornalista, conhecido como a "consciência da Rússia"

5. GPU, acrônimo de Direção Política de Estado (Gossudárstvennoie Politítcheskoie Upravlênie). Um dos órgãos de segurança da URSS, antecessor do KGB

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BRUNO FARIA, 35, artista plástico, tem obras expostas nas mostras "Onde estão as minhas obras?", no Mamam, e "Evoé", na galeria Amparo 60, ambas no Recife

FRIEDRICH GORENSTEIN (1932-2002), escritor e roteirista, assinou o roteiro de Solaris (1972), de Andrei Tarkovsky

IRINEU FRANCO PERPETUO, 45, é jornalista e tradutor de obras como "Memórias de um Caçador" (Editora 34) e "A Morte de Ivan Ilitch" (Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura)

MOISSEI MOUNTIAN, 68, é tradutor e fundador da editora Kalinka, dedicada à literatura russa


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