Folha de S. Paulo


Há meio século, tropicália chegava para 'arrombar a festa'

RESUMO Autor lembra o caldo cultural em que o tropicalismo eclodiu. Por incorporarem o imaginário estrangeiro e temas da sociedade de consumo, seus artífices destoavam da canção engajada em voga nos anos 1960. Segundo o artigo, ecos do movimento ressoam ainda hoje na arte do país.

Bruno Santos/Folhapress
Aquarela de Maria Lynch
Aquarela de Maria Lynch

Há três anos, quando a turnê de "Abraçaço" passou por Nova York, tive a oportunidade de encontrar Caetano Veloso em seu apartamento no East Village.

Ele vinha de Los Angeles com a Banda Cê e estava particularmente animado com os elogios que Randall Roberts, crítico do "Los Angeles Times", fizera ao show. Encontrou o texto na internet e fez questão de ler para mim a passagem que mencionava a presença de "Baby" no repertório.

Roberts dizia que era preciso deixar registrado para a história o fato de o compositor brasileiro "finalmente ter cantado sua clássica 'Baby' no glorioso espaço ao ar livre do Hollywood Bowl" –lembrando de que se tratava de uma canção tropicalista já transformada, àquela altura, em uma "pedra de toque sem fronteiras".

"Baby" foi gravada em 1968, um ano depois da explosão de "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque" no festival da Record, que marcou o lançamento dos tropicalistas na cena nacional.

Com formações inusitadas para a época, Caetano se fazia acompanhar de um grupo pop argentino, chamado Beat Boys, e Gil aparecia escoltado pelos moderníssimos Rita Lee e Os Mutantes.

Assim como "Alegria, Alegria", "Baby" destoava da nota nacionalista dominante na canção engajada que prosperava no país e atraía os corações e ouvidos de grande parte da juventude de esquerda, na onda de protestos contra a ditadura militar brasileira.

A canção de Caetano revestia-se de um internacionalismo "cool", enganosamente ingênuo, que repetia palavras do universo do consumo pop e dizia que você precisava ouvir Roberto Carlos e aprender inglês.

A letra, influenciada por conversas do compositor com sua irmã Maria Bethânia, citava também outra música, que não era da jovem guarda: a "Carolina", de Chico Buarque, que surgia justaposta à "margarina" e à "gasolina" –deixando transparecer a dimensão mercadológica da música popular, fosse ela escrita por um compositor de esquerda em registro poético elevado, fosse feita por um cabeludo do iê-iê-iê escapista. Os tropicalistas sabiam de onde estavam falando.

A ambição internacionalista do movimento decolava da plataforma de lançamento da bossa nova, uma síntese bem-sucedida e sofisticada do samba com as lições do jazz, que, ao ritmo único do violão de João Gilberto, musicou um projeto de país.

Em 1966, num depoimento à "Revista Civilização Brasileira", Caetano disse: "João Gilberto, para mim, é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira".

MODERNISMO

O tropicalismo valeu-se também da pista aberta pelo modernismo brasileiro dos anos 1920, embora os baianos ainda não soubessem inteiramente dessa conexão. Foi o poeta Augusto de Campos quem os apresentou à obra de Oswald de Andrade (1890-1954) e a suas teses sobre a antropofagia.

As relações com o grupo concreto são um capítulo importante da inscrição mais ampla do tropicalismo em São Paulo, que foi a cena fundamental do movimento. Na época dos festivais, Caetano e Gil moraram na capital paulista, e o tropicalismo suscitou nos meios intelectuais da cidade, dentro e fora da universidade, uma extensa e qualificada fortuna crítica.

Balanço da Bossa e Outras Bossas
Augusto de Campos
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Augusto de Campos foi um observador entusiasmado da primeira hora do movimento, identificando-se com sua inclinação vanguardista e seu interesse pelas linguagens da cultura de massa. O livro "O Balanço da Bossa" (2005) é um registro vivo desses encontros –e a canção "Batmacumba", do álbum "Panis et Circensis", de 1968, exemplifica muito bem a atração exercida pela poesia concreta.

Outro paulista, Roberto Schwarz, que tem seus atritos com o concretismo, tornou-se também, por caminhos diferentes, um interlocutor relevante no debate. Seu ensaio "Cultura e Política, 1964-1969", publicado no calor da hora, em 1970, na revista francesa "Les Temps Modernes", fazia uma avaliação crítica da tropicália que marcou época e continua a ser uma referência para as discussões sobre o movimento.

Mais recentemente, em comentário ao livro "Verdade Tropical" (1997), Schwarz escreveu sobre o internacionalismo tropicalista: "Caetano foi precoce na compreensão da política internacional da cultura, em que o influxo estrangeiro –inevitável– tanto pode abafar como trazer liberdade, segundo o seu significado para o jogo estético-político interno, que é o nervo da questão".

Nessa dinâmica, a influência estrangeira ou diretamente norte-americana, ainda que problemática, poderia servir como um caminho esperto para questionar o conformismo político e o preconceito cultural brasileiro –de direita, mas também de esquerda.

"O que conta não é a procedência dos modelos culturais, mas a sua funcionalidade para a rebeldia, esta sim indispensável ao país atrasado", escreveu Schwarz.

Como atitude política e estética, o tropicalismo assumiu antes a perspectiva do rebelde do que a do militante marxista, sem que isso necessariamente representasse um muro intransponível.

A politização da arte de vanguarda no pós-guerra, que ecoava a boa fórmula de Vladimir Maiakóvski ("não há arte revolucionária sem forma revolucionária"), disseminava-se em movimentos como a Nouvelle Vague francesa e se materializava no Brasil do energético 1967, em realizações potentes associadas ao tropicalismo, como o filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, a montagem de "O Rei da Vela" pelo Oficina ou a instalação "Tropicália", de Hélio Oiticica, que foi exposta no Rio de Janeiro em abril e emprestou seu título à canção-símbolo do movimento.

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CONTRADIÇÕES

Atuando no território da música popular, exposto às complicações (mas também às vantagens) da cultura comercial e dos veículos de massa, Caetano e Gil tomaram partido de construções alegóricas e paródicas para criticar e, ao mesmo tempo, exaltar, de maneira sarcástica, carnavalesca e, por vezes, melancólica, as contradições de um país onde arcaísmos e modernidades conviviam e se entrechocavam.

O efeito dessas colagens bombásticas e cinematográficas, que confrontavam referências eruditas e vulgares nos arranjos e nas letras das canções, rompia com o programa nacional-popular, inclinado a separar, e não a justapor, o que seriam polos antagônicos e excludentes –esquerda x direita, consciente x alienado, militante x desbundado, popular x elitista, nacionalismo x imperialismo.

Em 1967, em uma entrevista, Caetano respondeu aos que lhe cobravam mais compromisso com as "raízes" da cultura nacional: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot dogs''.

O compositor dizia-se cada vez mais interessado "pela vitalidade natural da música vulgar e comercial" do que pelo "intelectualismo" em que teriam caído "todos os que se acreditavam continuadores de Caymmi, Noel e outros". E completava: "Estou me esforçando para respeitar meu público, que é jovem como eu, e está também interessado em que sejamos gente do mundo de agora''.

A figuração paródica e fragmentada do país levada adiante pelo tropicalismo, embora criticada à esquerda por ser supostamente incapaz de resolver a equação e projetar o resultado para o futuro, tinha, sim, um vetor progressista e, a seu modo, nacionalista.

Um nacionalismo, no entanto, que se via tolhido pela plataforma hegemônica da esquerda e que veio a se encontrar nas imensidões históricas, afetivas, críticas e utópicas de Nabucos, Freyres, Bonifácios e Jobins.

O tropicalismo, disse Caetano certa vez, "foi uma maneira de arrombar a festa". Esquematicamente, foi uma intervenção atinada e anárquica no ambiente politizado da cultura brasileira da década de 1960, sintonizada com a cultura pop da juventude internacional.

Renovou a sintaxe, a semântica e o aspecto visual da música popular. Abriu o leque para uma atitude inconformista, transversal e cosmopolita, que questionava o obscurantismo autoritário, os moralismos, os tabus da "intelligentsia" e os códigos do bom-gostismo.

A bossa e a palhoça, Brasília e Carmen Miranda, Beatles e Vicente Celestino, Batman e macumba. A cultura brasileira contemporânea sem a tropicália seria imensamente mais pobre.

HERANÇA

Mesmo num país já bastante diferente, o tropicalismo continuou a despertar interesse nas novas gerações. A aproximação entre Chico Science e Gil ou, mais recentemente, entre Caetano e os rapazes da Banda Cê, são amostras dessas relações, atualizada pelos tribalistas Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown.

O legado está vivo, não apenas na figura lendária de alguns dos personagens centrais dessa história, como Caetano, Gil, Zé Celso ou Tom Zé, que continuam ativos e criativos, mas também na incorporação natural de questões levantadas àquela época ao fluxo da cultura contemporânea.

Ninguém imagina que se possa, no Brasil de hoje, organizar protestos contra a guitarra elétrica ou considerar que a bossa nova seja uma intromissão imperialista para descaracterizar o genuíno samba brasileiro.

Os desdobramentos estão aí, tanto nas margens, como informação e alimento para novos artistas, quanto na consagração do "mainstream" –basta dizer que "Tropicália" tornou-se música de abertura de uma novela da Globo.

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES, 61, é jornalista da Folha e colaborador em Nova York


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