Folha de S. Paulo


diário de londres

Artes da resistência

Reprodução
O escritor irlandês Oscar Wilde em imagem de 1882

Se a palavra "abuso" virou moeda corrente em atos e declarações dos poderosos de plantão, não surpreende que a aula inaugural de uma das principais filósofas e intelectuais públicas da atualidade possa ser resumida na frase "resistir é preciso". A conferência da americana Martha Nussbaum, 69, proferida no Centro de Estudos Políticos, Filosóficos e Jurídicos do King's College londrino, incluiu ainda um testemunho pessoal.

Entre os episódios marcantes de sua rica biografia, um em particular veio à tona recentemente e parece ter renovado o ímpeto de Nussbaum para o debate sobre a violência sexual –em especial quando perpetrada por celebridades, tema da conferência.

Nussbaum contou que, ainda estudante universitária, viu-se na zona cinzenta entre o sexo consentido e o estupro. Não denunciou o episódio porque o agressor, que ela convidara a seu apartamento no "espírito de liberação" dos anos 1960, era um ator já de alguma fama e prestes a se tornar um queridinho da TV e mais tarde candidato ao Congresso americano.

A filósofa preferiu não revelar o nome da celebridade.

Em seu apelo contra a noção de homens acima da lei, Nussbaum, uma figura cativante e um pouco intimidadora, alta, de cabelos loiros vivos e voz potente, grave, perfeita para suas breves imitações da fala empostada de certos machões cheios de si, preferiu se concentrar em casos envolvendo outro tipo de figura pública quase intocável: astros do esporte.

Não deixou de mencionar os políticos, mas acrescentou, bem-humorada, que estes são mais fáceis de vigiar e punir pois mais descartáveis, ao contrário de esportistas, "indivíduos cujos talentos valem muita grana para muita gente".

EFEMÉRIDE GAY

Londres resiste também em outras frentes à onda de ameaças a minorias. Em 2017, completam-se 50 anos da lei que descriminalizou a homossexualidade na Inglaterra. Na programação comemorativa há a reconstituição em detalhes, a partir da planta e de fotografias, de um clube gay clandestino perto de Covent Garden –fechado numa batida policial que resultou em mais de uma centena de prisões, nos anos 1930– e a aparição, pela primeira vez em solo britânico, de um retrato de corpo inteiro do jovem Oscar Wilde (1854-1900).

O retrato é parte de uma exposição inédita intitulada "Queer British Art 1861-1967", que a Tate Britain inaugura dia 5 de abril. Cobre mais de um século do trabalho de artistas como Francis Bacon (1909-92), David Hockney –em cartaz na mesma galeria com uma extensa retrospectiva– e Duncan Grant (1885-1978), o extravagante pintor do grupo de Bloomsbury.

PIONEIROS DA TOLERÂNCIA

Imperdível ainda é a primeira e histórica retrospectiva de outro expoente de Bloomsbury, a pintora Vanessa Bell (1879-1961), na Dulwich Picture Gallery. Irmã de Virginia Woolf (1882-1941), Bell foi uma espécie de anfitriã permanente do grupo de intelectuais e artistas mais influente do início do século 20 na Inglaterra.

Era em torno dela que gravitavam, além do marido, o crítico Clive Bell (1881-1964), o economista John Maynard Keynes (1883-1946), o biógrafo Lytton Strachey (1880-1932) e o pintor Roger Fry (1866-1934).

Sem esquecer o próprio Duncan Grant, que se notabilizou (como o grupo todo, aliás) pela atitude favorável ao sexo livre. O passeio à vila no sul de Londres onde fica a galeria é também uma viagem pela intimidade desses pioneiros da tolerância.

HUMANIDADE COMUM

Quem preferir uma viagem pela intimidade de gente comum, e de um tempo ainda mais distante, tem a oportunidade perfeita com The Casebooks Project (bit.ly/1LngE3C). O projeto digitaliza prontuários redigidos por dois "astrólogos", híbridos de médicos generalistas e psicólogos, na virada do século 16 para o 17.

As histórias ali contadas agora inspiram obras de seis artistas (entre eles o brasileiro Tunga, morto no ano passado), expostas até 23/4 na Universidade de Westminster.

Os males da época podiam ser outros –os londrinos de então não se queixariam de ansiedade por atentados como o da semana que passou–, mas o que essa combinação de arte e ciência revela é, sobretudo, nossa humanidade comum através dos séculos.

CHRISTIAN SCHWARTZ, 41, pesquisador visitante na FGV e em Cambridge, é jornalista e tradutor


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