Folha de S. Paulo


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O dramaturgo libanês Rabih Mroué e a morte das fotos

Rabih Mroué
Colagem do dramaturgo e artista visual libanês Rabih Mroué
Colagem do dramaturgo e artista visual libanês Rabih Mroué

Meu nome é Rabih Mroué e nasci em Beirute. Tenho 50 anos. Se deduzir as horas que passei dormindo, viajando e me distraindo, fico com 17 anos, quatro meses e 22 dias de vida desperta em Beirute. Durante todo esse tempo, quando meus olhos estavam abertos, eu não estava necessariamente percebendo o que acontecia em torno de mim na cidade. Certamente devo ter perdido muitas coisas, mesmo que elas tenham acontecido bem diante dos meus olhos.

Parece-me que existem dois tipos de imagem: uma que afirma presença e uma outra que confirma ausência. E quando falo em nossa ausência, quero dizer não apenas a exclusão dos cidadãos ordinários do Líbano da imagem oficial mas também a impossibilidade de viver como indivíduo nessa parte do mundo. É uma espécie de cidadania perdida em um Estado ausente.

Essa é a razão para que eu sempre tente falar por mim e escapar à armadilha de representar o Oriente Médio, o mundo árabe, o Líbano etc.

Ao fim da guerra civil libanesa (1975-90), intensificaram-se as discussões sobre a melhor maneira de reconstruir a área central de Beirute, que havia sido destruída. A maioria dos libaneses compareceu à região com câmeras na mão.

Ali costumava ser o coração da capital. Durante a guerra, este fora desertado por seus moradores e se tornara um imenso espaço vazio separando o leste do oeste. Por amor ao lugar, as pessoas começaram a filmá-lo e a fotografá-lo, quiçá na esperança de ressuscitá-lo.

Todos tiramos muitas fotos, sem perceber que, a cada quadro, uma parte do centro desaparecia. A região destruída e abandonada deixou seu lugar de origem e passou a ocupar aqueles filmes e fotografias. Ainda será preciso esperar longos anos até que possamos amar a nova cara do centro da cidade, a ponto de querermos capturá-la em imagens –e, por meio desse gesto, a matarmos sem querer.

A cada dia somos bombardeados com imagens. O mundo produz um fluxo iconográfico ininterrupto, cada nova imagem apagando a que a precede. Não podemos mais tolerar toda essa carga. Será por isso que já não sabemos como ver? Será uma incapacidade de ver a imagem como uma continuidade da experiência corpórea? Os olhos ainda retêm a faculdade de ver?

Existem muitas coisas acontecendo em torno de nós que desconhecemos. Se não vemos o outro, não significa que ele não exista. Está lá, mas não somos capazes de vê-lo, não somos capazes de reconhecê-lo. Então, repentinamente, esse outro se ergue diante de nós.

Não foi isso que aconteceu com o Estado Islâmico? Todos ficaram chocados e se perguntaram: de onde vieram essas pessoas? Onde elas estavam? É como se tivessem vindo do desconhecido, de outro planeta.

Na verdade, elas estavam dentro de nós, vivendo na mesma sociedade, na mesma casa, mas nossos olhos estavam fechados.

RABIH MROUÉ, 50, ator, dramaturgo e artista visual libanês, participa da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

PAULO MIGLIACCI, 48, é tradutor.


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