Folha de S. Paulo


Sete cenas com Andrea Tonacci

Acervo pessoal
Andrea Tonacci, George Stoney e índio não identificado em fotografia que viúva de Tonacci deu a Sadek
Andrea Tonacci, George Stoney e índio não identificado em fotografia que viúva de Tonacci deu a Sadek

Cena 1: 1976, anfiteatro de cinema, Escola de Comunicações e Artes da USP. Sempre muitos visitantes para assistir às aulas do Paulo Emílio [Sales Gomes]. Ele e nós, os alunos, numa mesa lá em baixo, perto da tela. Naquele dia, como sempre, teríamos um cineasta convidado, um tal de Andrea Tonacci, do qual eu nunca tinha ouvido falar. Vimos o filme "Bang Bang". Era contra a ditadura, como todos nós, mas era muito poético. E não tinha história! Fiquei impressionado com as imagens e com os movimentos de câmera. Depois, na conversa, achei o Tonacci sério, incisivo, angustiado, de olhar triste, e com um filme para lá de esquisito. Eu era analfabeto, mas começava a aprender cinema. Ele falava em índios do Maranhão.

Cena 2: 1979, casa do Andrea, na rua Conselheiro Brotero. Ele havia experimentado movimentos sufis, fazia ioga e era ligado a um templo budista. Continuava à margem do senso comum. Eu tinha interrompido as incursões erráticas, treinava tai chi chuan com um grande mestre chinês. Trocávamos movimentos, conhecimentos e livros que o ocidental cartesiano não valorizava. O país se livrava da ditadura, podíamos nos dedicar mais ao caminho do conhecimento de nós mesmos e do mundo, trilha individual, complexa e interminável. Paralelamente, éramos companheiros de jornada.

Cena 3: Andrea me ligou, fui ao seu apartamento. Encontrei Leon Cakoff, que fazia a Mostra de Cinema. Andrea tinha trazido escondido algumas latas de filmes dos EUA. Eu ia para a Espanha e poderia trazer outras latas. Conheci outro querido amigo e comecei a traficar para o Brasil latas de filmes proibidos pela ditadura.

Cena 4: A vida pessoal do Andrea estava turbulenta. Seu filho era pequeno. Escrevemos um roteiro sobre a civilização que se esvaía em correrias e poluição. Num casarão abandonado (no começo da Anhanguera) algumas pessoas se agrupariam e um garoto seria o salvador da turma. Fomos até a terceira ou quarta versão. O filme jamais foi realizado.

Cena 5: Andrea recolheu-se num sítio em Extrema. Uma descarga elétrica machucou sua mão. Para quem lê os sinais do Universo, era hora de voltar da reclusão para a urbe. Continuava a pensar e a agir inspirado na civilização indígena.

Cena 6: início dos anos 1980, minha casa em São Paulo. Apresentei meu professor americano George Stoney (1916-2012) ao Andrea. Empatia e admiração imediata. George, além de um importante documentarista, tinha um trabalho forte de vídeo comunitário em Manhattan. Na visita seguinte, ele foi com Andrea para uma aldeia e ligou sua câmera, como estrangeiros sempre fazem. Andrea obstou, explicou que índios não são objetos, deveriam ser respeitados. Nas visitas seguintes, muitas horas foram gravadas –algumas pelos índios, com as câmeras do Andrea e do George. A foto deles que ilustra este texto foi tirada por algum índio fotógrafo em uma dessas visitas.

Cena 7: 2006, Nova York, aniversário de 90 anos do George, festa no Downtown Community Center. Nenhum de nós pôde ir. Na casa do Andrea, agora na Pompeia, ele, Julio Wainer e eu fizemos uma carta em vídeo para ser exibida na festa. Cristininha, sua querida companheira há anos, nos olhava doce e incrédula durante o ensaio. A "videoletter" foi exibida, emocionou George.

Aos 96 anos, ele resolveu morrer. Avisou sua filha que a hora tinha chegado, fechou a porta do quarto, se deitou na cama e se foi.

Epílogo: Lina, amiga comum, me mandou uma mensagem estranhando eu não estar no velório do Andrea. Não sabia que ele estava doente, fato dividido apenas com sua irmã, com Cristininha e com Dani, seus mais fortes laços afetivos. À sua maneira séria, discreta e solitária, seguiu o caminho que o Universo lhe apresentava.

JOSÉ ROBERTO SADEK, 62, doutor em dramaturgia, professor de roteiro, é secretário da Cultura do Estado de São Paulo.


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