Folha de S. Paulo


Novo chefe do balé do Municipal, Ismael Ivo salta no escuro

RESUMO Ismael Ivo, dançarino e coreógrafo que fez carreira no exterior, acaba de assumir a direção do Balé da Cidade de São Paulo, corpo do Theatro Municipal. Em entrevista, fala sobre o solipsismo de certa dança contemporânea e diz que a reinvenção da disciplina está a cargo de brasileiros e asiáticos, criativos e viscerais.

Na mesa da sala do novo diretor do Balé da Cidade de São Paulo, algumas fotografias estão espalhadas. Em todas elas, o bailarino aparece acompanhado de seus colegas de profissão: Pina Bausch (1940-2009), William Forsythe, Jirí Kylián, Marina Abramovic.

Ismael Ivo, 62, filho ilustre do boom da dança contemporânea de São Paulo nos anos 1970, começou a transitar entre as figuras de proa da área quando deixou o país, na década seguinte, para construir sua carreira no exterior.

Criador e diretor artístico do ImpulsTanz, de Viena, um dos mais importantes festivais de dança contemporânea da Europa, ele também foi diretor do Teatro Nacional Alemão, em Weimar ("Fui o primeiro negro e estrangeiro nesse posto") e chefiou a seção de dança da Bienal de Veneza.

De volta ao Brasil para comandar o corpo de baile do Theatro Municipal de São Paulo, cidade onde nasceu, Ivo aporta na praça Ramos de Azevedo meses depois de uma das mais agudas crises da história da instituição, que resultou em rombo milionário no caixa, demissões na alta cúpula e acusações de desvio de verbas.

Ele se esquiva de comentar o episódio, torneando o assunto com a flexibilidade do bailarino acostumado às engrenagens da política cultural. Ninguém é diretor por suas piruetas só no palco. "A nova gestão propôs um diálogo. Concordância e discordância fazem parte, mas a arte se sustenta por si mesma, sem política partidária", tergiversa.

O tema de sua coreografia de estreia, porém, sugere certo atrito com a política cultural do alcaide: "Risco", que estreia em 24/3, vai tratar de grafite –e, de certa forma, celebrá-lo. Ele nega a saia justa. "Conversamos com o secretário de Cultura, e ele achou ótimo a arte ser uma expressão da realidade da cidade", assegura. "Hoje a dança diz coisas. É uma linguagem atual, tem poder. [No Balé da Cidade] quero que os corpos criem vozes."

O entusiasmo é de quem ganhou voz e destaque contra todas as probabilidades –quando começou a praticar, no início dos anos 1970, Ivo ganhou bolsas nas academias da cidade, mas era o único da turma a emendar as aulas com viagens de volta para casa a bordo de dois ou mais ônibus.

O vigor apontado por Ivo, no entanto, não é diagnóstico unânime no meio. Segundo a crítica de dança da revista "The New Yorker", Joan Acocella, trata-se da "menos respeitada das belas artes". Ela apresenta esse epíteto em um texto de título ainda mais macambúzio: "A Morte do Crítico de Dança Americano".

Não que a melancolia seja de todo despropositada: uma pesquisa da organização Dance/NYC divulgada no final de 2016 mostrou que o público de dança na metrópole americana (uma das mecas da prática) caiu 20% desde 2010.

No Brasil, no ano passado, companhias importantes como a Quasar, de Goiânia, ou o Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, perigaram encerrar suas atividades. Grupos como o Corpo, de Belo Horizonte, ou o Stagium, de São Paulo, estão em plena travessia do deserto, amargando a pior crise financeira de suas mais de quatro décadas de existência.

DANÇA DA SOLIDÃO

Para Ivo, a penúria da dança reflete o momento atual, crítico em todos os aspectos ("político, social, existencial"). Mas há também um mea-culpa a ser feito nas fileiras coreográficas, ele avalia.

"A produção contemporânea tentou quebrar formas e se distanciar de uma dança mais rígida. Nesse movimento, acabou se centrando em si mesma, deixou de considerar a experiência do receptor. Ora, se é para dançar só para você, fica em casa!"

Essa postura ensimesmada contrasta profundamente com a dança acessível concebida (e praticada) por Pina Bausch, uma das grandes referências de Ivo. "Não é preciso fazer concessões, o artista tem que ter autonomia na criação. Só não dá para não estabelecer laço nenhum [com a plateia]", diz ele.

Dito isso, ninguém deve se apressar em redigir o epitáfio da mal-amada arte, adverte o coreógrafo: "Após o [balé] clássico da Rússia e da Europa, a dança moderna americana reinventou a linguagem; então veio a dança-teatro, de Pina Bausch, na Alemanha, e a revolução franco-belga [com a nova teatralidade, o humor e a transdisciplinaridade de nomes como Maguy Marin e Anne Teresa de Keersmaeker]. Depois disso, ponto de interrogação".

Ele arrisca um palpite: brasileiros e asiáticos vão encabeçar o novo capítulo. Os primeiros têm a seu favor o jogo de cintura inato:

"Vivemos uma realidade surreal, que se transfere para o corpo, estimula sua criatividade. O brasileiro nasce sem os privilégios do Primeiro Mundo, mas vai se ajeitando. O bailarino daqui possui tantas habilidades técnicas quanto o russo, o francês, o americano e o alemão, mas é o que primeiro responde a um estímulo. Se você propõe um tema para um bailarino, o alemão para e reflete, o americano calcula, e o brasileiro vai lá e faz. É um artista suicida em potencial."

A mesma característica camicase ele vê no butô, dança japonesa com a qual teve o primeiro contato ainda antes de sair do Brasil. "Entendi a potencialidade de explosão dessa dança silenciosa. Antes de sair para a guerra, o samurai, guerreiro suicida, entrava em estado zen, de paz. E o butô, que denomino a dança dos órgãos internos, foi além nessa dualidade [guerra x harmonia]."

Tanto do lado brasileiro quanto do japonês, a tal "dança suicida" é, para ele, uma "resposta do corpo ao seu tempo, uma revolta dos órgãos". Surge em situações-limite –a origem do butô, por exemplo, está ligada ao lançamento da bomba de Hiroshima.

"Muitas vezes, a vida nos empurra até a beira do barranco. No Japão, cai uma bomba atômica; no Brasil, tem alguém investigando [um esquema] e cai um avião. Fica-se sem chão, o que incita a um salto no escuro, a uma fuga da zona de conforto."

Quem não temia o risco era o coreógrafo e diretor brasileiro Klauss Vianna (1928-92), outro farol na carreira de Ivo. "O [coreógrafo norte-americano] Forsythe é um gênio. Aprendi muito com ele sobre técnicas de desconstrução de uma linguagem como o balé e sobre improvisação. Mas meu verdadeiro mestre de improvisação foi o Klauss."

Vianna desenvolveu uma técnica coreográfica que toma como ponto de partida a consciência corporal, o funcionamento de músculos, ossos, articulações e respiração e o reconhecimento das vivências e emoções geradoras do movimento. "Ele dizia que o músculo tem emoção e que, se você usar os canais certos, desperta essas memórias emocionais. Isso é lindo", conta Ivo.

Os procedimentos desenvolvidos por Vianna em parceria com sua mulher, Angel, e sistematizados pelo filho deles, Rainer, formaram a geração de bailarinos que explodiu nos anos 1970 e ainda figuram no repertório de artistas da dança e do teatro em atividade. Mas o mineiro é hoje pouco lembrado pelo público não iniciado.

"Às vezes, não percebemos que aqui no Brasil há coisas até mais vanguardistas do que lá fora. Ao mesmo tempo, os gestores da cultura ficam perdidos no turbilhão da novidade, no tempo da notícia, sem se dar conta de que, para se construir algo, é preciso um longo período", afirma Ivo.

De dentro das fotos espalhadas pela mesa do diretor no Municipal, Pina Bausch, William Forsythe e cia. aquiescem.

IARA BIDERMAN, 55, é jornalista.


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