Folha de S. Paulo


Antologia e filme lançam luz sobre o escritor Antonio Di Benedetto

RESUMO Nome maioral das letras argentinas no século 20, Antonio Di Benedetto retorna aos holofotes com a tradução para o inglês de "Zama", simultaneamente levado às telas pela premiada Lucrecia Martel. Além disso, volume de não ficção contrasta sua euforia no começo da carreira com a depressão após a prisão e o exílio.

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No dia 15 de janeiro de 1944, a capital da província argentina de San Juan, próxima à fronteira com o Chile, sofreu um terremoto que destruiu 80% de seu casario e matou quase 15 mil pessoas. Apesar de sua proporção, a tragédia foi pouco documentada por causa da distância geográfica em relação a Buenos Aires e devido à precariedade dos meios de comunicação da época.

Quando a notícia chegou a Mendoza, município mais rico e com mais recursos daquela região (Cuyo), um repórter de 22 anos do jornal "La Libertad" viajou até a cidade em escombros.

A visão que teve ali marcaria sua vida e sua obra para sempre. "Os cadáveres recuperados pareciam conservar os gestos da defesa instintiva de seus últimos momentos. Uns tinham as mãos na cabeça, outros estavam encolhidos, como se tivessem tentado se proteger enquanto um muro caía sobre eles", conta.

Diario Clarin
O escritor argentino Antonio Di Benedetto (1922-1986)
O escritor argentino Antonio Di Benedetto (1922-1986)

Entre as descrições de cenas como esta, fazia questão de publicar os nomes das vítimas. "É preciso que se conheça quem foram essas pessoas em vida", escrevia Antonio Di Benedetto (1922-86), que, antes de se transformar em um dos autores mais importantes da Argentina no século 20, havia declarado sua obsessão pelo jornalismo, ofício ao qual devotou 43 anos.

Pouco conhecido no Brasil, Di Benedetto é autor de um clássico da literatura latino-americana, "Zama" (1956), recém-elogiado pelo Nobel J.M. Coetzee na "New York Review of Books" por ocasião de sua tardia tradução ao inglês.

A adaptação do romance para o cinema estreia em junho no circuito argentino. À frente dela está a premiada Lucrecia Martel ("O Pântano"), que dirige aqui um elenco internacional, capitaneado por atores como Daniel Giménez Cacho (México) e Matheus Nachtergaele (Brasil).

Paralelamente, acaba de sair na Argentina o volume "Escritos Periodísticos 1943-1986" (ed. Adriana Hidalgo), que traz a faceta menos conhecida do ficcionista, mas à qual ele próprio deu mais valor e dedicou mais tempo de vida: o jornalismo.

O volume traz coberturas de eventos regionais –caso do terrível terremoto de San Juan–, de festivais de cinema na Europa, de eleições em países da América Latina e do golpe militar na Bolívia em 1964.

Também estão no livro relatos sobre palestras de Jean-Paul Sartre e Eugène Ionesco que Di Benedetto viu em Paris e uma das últimas entrevistas que Julio Cortázar (1914-84), então vivendo na França, deu na Argentina.

A organizadora da obra, Liliana Reales, argentina que dá aulas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), diz que o jornalismo sempre foi o território de Di Benedetto, o mirante a partir do qual ele observava o mundo: "Ele dizia que havia perseverado para conseguir ser jornalista e continuar sendo jornalista. Seu texto tem um estilo particular, do cronista, mas é preciso nos dados e dotado de muito cuidado narrativo. Com o tempo vai ganhando em síntese, fica mais econômico, e isso se reflete nos romances".

ROMANCISTA

O romance "Zama" (que saiu no Brasil pela Globo em 2006) deu ao autor projeção internacional, ao mesmo tempo em que, na Argentina, ajudou a fortalecer a literatura produzida fora do grande centro, Buenos Aires. Os autores principais dessa corrente no século 20 foram Di Benedetto e Juan José Saer (1937-2005), nascido em Santa Fe e que se radicou em Paris.

Para o crítico literário Carlos Gamerro, "Di Benedetto e Saer se parecem por escrever sem passar por Buenos Aires, nem física nem mentalmente. Em suas principais obras, 'Zama' e 'O Enteado' (ed. Iluminuras), recriam o período da conquista e da colonização hispânica da América, propondo sua própria versão do homem espanhol americano em formação".

"Zama" se passa em 1790 e conta a história de Don Diego de Zama, um administrador da Coroa espanhola enviado aos confins do então chamado Vice-Reinado do Rio da Prata, a um território que hoje corresponde ao interior do Paraguai. As preocupações de Zama giram em torno dos anseios de uma improvável promoção –já que ele é um "criollo" (espanhol nascido nas Américas), segmento em geral preterido na ocupação de altos postos– e de um reencontro com a mulher, que ficou na capital.

Enquanto isso, leva uma vida pontuada por tormentos, agindo de maneira promíscua e refletindo sobre o deserto que era, naquele período, essa parte do continente.

"Até para ele [Zama], falta realidade à América. É uma terra plana e em cuja vastidão ele se sente perdido", descreve Coetzee em sua resenha, publicada em janeiro na "New York Review of Books".

A ideia de "deserto" povoa o imaginário cultural e histórico da Argentina desde o século 19, quando havia a utopia de levar a dita "civilização" ocidental até os confins de um país imenso, em sua maioria desabitado ou povoado por indígenas.

Para Reales, o "deserto" de Di Benedetto, presente em "Zama", faz deste livro "parente de obras como 'Pedro Páramo', do mexicano Juan Rulfo, e 'Grande Sertão: Veredas', do brasileiro Guimarães Rosa".

Gamerro leva o paralelo ainda mais longe. "Eu inscrevo Di Benedetto diretamente na literatura mundial. 'Zama' é um dos grandes relatos sobre a espera, comparável a 'O Castelo', de Kafka, a 'Esperando Godot', de Beckett, ou a 'Ninguém Escreve ao Coronel', de García Márquez."

Ainda que lançada mais de 60 anos depois de o original ter sido escrito, a tradução de "Zama" ao inglês sem dúvida reforça a vocação universal do autor. Depois da história do oficial da Coroa espanhola, sairão nos EUA dois outros livros-chave dele, "El Silenciero" (1964) e "Los Suicidas" (1969).

BIOGRAFIA INFELIZ

Ler os escritos jornalísticos de Di Benedetto em seu princípio de carreira é se defrontar com um homem feliz com seu ofício. Nota-se ali a volúpia de reportar quase tudo o que vivia, dos fatos em si às expressões e gestos das pessoas com quem interagia. Ele também nutria gosto por viagens e por conhecer pessoas. As páginas traem ainda certa vaidade intelectual.

Sua felicidade, porém, teve fim num episódio bem específico. Em 24 de março de 1976, horas depois de uma junta militar dar um golpe e tirar do poder a presidente Isabel Perón, iniciando uma ditadura que duraria até 1983, o jornal "Los Andes" foi invadido por agentes da repressão.

À época, Di Benedetto era o diretor de Redação do diário, então o principal da região de Cuyo. O escritor não exercia militância política e não participava de organizações clandestinas; sua prisão até hoje não foi bem explicada.

"Naquele momento de começo da ditadura, os militares não foram atrás apenas de militantes mas também de artistas, intelectuais e jornalistas –qualquer um que estivesse numa posição em que pudesse questionar o regime. E Di Benedetto era uma figura de relevo, dirigindo um jornal importantíssimo", explica Reales.

O escritor foi levado para um dos centros de detenção mais temidos do período, em La Plata, de onde também saíam os chamados "voos da morte", durante os quais prisioneiros sedados e com pedras atadas aos pés eram atirados de aviões militares no rio da Prata, sem possibilidade física de reação.

Di Benedetto esteve nessa prisão por 17 meses e dez dias, período em que foi torturado e passou por pelo menos quatro simulações de execução. Do lado de fora, vários intelectuais, como Victoria Ocampo, Ernesto Sabato, Jorge Luis Borges e o Nobel alemão Heinrich Böll, faziam repetidos pedidos por sua liberação. A pressão foi tanta, de dentro e de fora do país, que os generais o liberaram sob a condição de que deixasse imediatamente a Argentina.

O escritor foi para a Europa e se instalou na Espanha. "Ele viveu na pobreza no exílio, além de andar sempre deprimido. O desterro tirou tudo dele: a vida que tinha, seus contatos, a possibilidade de transmitir, reportar as coisas –tudo o que o fazia feliz", conta Reales. Sobreviveu graças a pequenos pagamentos por conferências, a colaborações para algumas publicações e à ajuda de amigos.

Quando a ditadura terminou, Di Benedetto voltou à Argentina e decidiu ficar em Buenos Aires, por considerar que seria mais fácil reconstruir sua carreira a partir dali. Mas a estratégia não funcionou. Apesar do reconhecimento tardio, dos prêmios e da atenção midiática, sentia-se mal o tempo todo e dizia isso a autores jovens que o procuravam, amigos e familiares.

"Não houve um verdadeiro retorno. Tudo o que a prisão e, depois, o desterro tiraram dele foi irrecuperável, fragilizou-o", acrescenta Reales.

Nas entrevistas finais, que também integram a compilação, Di Benedetto dizia que não aguentava mais ter pesadelos e que os tratamentos pelos quais passava eram inócuos.

"Desde que cheguei a Buenos Aires, os pesadelos se sucedem de maneira maníaca, terrível. Acordo empapado em suor, gritando, com taquicardia. Te peço que falemos de outro assunto. Estou quebrado e a ponto de chorar", disse a um jornalista do diário "Clarín", poucos dias antes de morrer, em 10 de outubro de 1986.

SYLVIA COLOMBO, 45, é correspondente da Folha em Buenos Aires


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