Folha de S. Paulo


Como os grandes jornais e as mídias sociais tentam responder à invenção deliberada de fatos

RESUMO Texto compila iniciativas de publicações estrangeiras com vistas a frear a disseminação de notícias falsas. Autor mostra que Facebook e Google, atores decisivos para o fenômeno adquirir o vulto atual, financiam redes de checagem, apesar dos dividendos que auferem da leitura maciça de reportagens enviesadas.

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Em 8 de abril de 1984, o "New York Times" publicou a reportagem "O império em expansão de Donald Trump". Descrevia-se um evento esportivo no qual uma multidão, incluindo "alguns dos mais ricos, poderosos e famosos nova-iorquinos", cercava aos gritos o empresário, então com 37 anos, como se fosse "estrela de rock".

Trump não reclamou.

Ao longo do último mês, já presidente dos Estados Unidos e desgostoso da cobertura cada vez mais negativa, o mesmo Trump chamou o jornal de "fake news" (notícia ou noticiário falso) pelo menos três vezes -talvez tenha aumentado esse número desde a conclusão desta edição, na quinta-feira (16), pois é sua leitura diária e alvo preferencial no Twitter.

A exemplo de outros políticos, ele usa a seu favor uma expressão criada para descrever outra coisa, uma pandemia anterior à eleição americana: sites e indivíduos que produzem narrativas sensacionalistas, aparentemente jornalísticas, mas falsas, para ganhar dinheiro com publicidade em plataformas como Facebook e Google.

Em sua versão distorcida, "fake news" tornou-se clichê para diversos governantes interessados em desmerecer o jornalismo crítico ou simplesmente verdadeiro.

Em recente entrevista ao Yahoo! News, por exemplo, o ditador da Síria, Bashar al-Assad, descartou como notícia falsa o relatório da Anistia Internacional sobre assassinatos em prisões de seu país.

O "NYT" se armou para o combate com Trump e seus tuítes, eles próprios uma fonte de falsidades.

Três dias antes da posse, o jornal anunciou ter separado US$ 5 milhões (R$ 15,5 milhões) adicionais para a cobertura do novo governo. Desde então, tem publicado enunciados como "Trump não vai voltar atrás em sua mentira sobre fraude eleitoral. Aqui estão os fatos".

Cripta Djan
Pichação de Djan Ivson, artista que ilustra a edição da Ilustríssima de 19 de fevereiro

O diário tomou a frente na reação institucional aos desmandos do presidente americano, mas os outros dois principais jornais do país, "The Washington Post" e "The Wall Street Journal", também adotaram cobertura obstinada, ainda que menos agressiva. Evitam, por exemplo, usar a palavra "mentira".

O "WP" tem há cinco anos uma estrutura de checagem de fatos, que usa uma escala de Pinóquios para classificar informações questionáveis, e o "NYT" admite montar a sua, mas a resposta do jornalismo profissional americano à chamada era da pós-verdade tem sido simples: mais e melhor jornalismo.

Já se fala até em "guerra de reportagem" entre os grandes jornais americanos.

JORNALISMO FORTE

A resposta não se restringe aos EUA. Em levantamento do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, da Universidade de Oxford (Inglaterra), feito com 143 editores e executivos de veículos de comunicação de 24 países, inclusive o Brasil, 70% afirmaram que a preocupação generalizada com notícias falsas fortalecerá o jornalismo em 2017.

Para tanto, segundo um editor irlandês destacado no estudo, a mídia de qualidade precisa ser "mais afirmativa sobre seu jornalismo e sobre como ele é feito, articular os valores que sustentam esse jornalismo". No "NYT", desde a eleição de Trump, os anúncios de assinatura levam frases como "Verdade. É vital para a democracia".

O combate contra as notícias falsas parte de base mais firme do que se pensava. Segundo levantamento do Centro de Pesquisas Pew (EUA), 56% dos americanos consumidores de informação conseguem identificar a fonte da notícia. Para o estudo, o resultado é positivo e "especialmente relevante à luz das notícias fabricadas".

A pesquisa também mostra, porém, que essa capacidade de identificação cai se a notícia é acessada via rede social: 10% dos entrevistados chegaram a errar, apontando como fonte o Facebook, que não produz notícias, só as distribui.

É mais uma indicação de que o foco da proliferação de notícias falsas está nas plataformas de tecnologia, que estimulam a produção e o consumo de enunciados sensacionalistas e sem base. A solução, portanto, não pode partir só das organizações jornalísticas.

Na política, o fenômeno chamou a atenção pela primeira vez com o "brexit", o plebiscito que decidiu em junho de 2016 pela saída do Reino Unido da União Europeia.

Evidenciou-se que a persistência das mentiras na campanha não se devia ao vilão tradicional -o magnata Rupert Murdoch, dono de jornais e canais de televisão-, e sim à rede social de Mark Zuckerberg.

Como identificou Emily Bell, diretora do Centro Tow para o Jornalismo Digital, da Universidade Columbia (EUA), foi nos ambientes fechados do Facebook e de outras plataformas, nas ilhas que só compartilham conteúdo de quem pensa da mesma maneira, que as notícias falsas se difundiram sem questionamento, imunes à busca pelo contraditório que o jornalismo costuma empreender.

De maneira geral, segundo levantamento conjunto da Universidade Columbia com o Instituto Nacional de Pesquisa em Informática e Automação, da França, 59% dos links compartilhados nas mídias sociais não são sequer abertos por quem os compartilha.

No comentário de um dos pesquisadores, "as pessoas se mostram mais dispostas a compartilhar um texto do que a lê-lo, formam opinião baseada num sumário ou num sumário de um sumários". Um comportamento típico do "consumo contemporâneo de informação", em que a capacidade de atenção é cada vez menor.

A questão tem forte viés financeiro e não se limita à mídia social. Facebook e Google, plataformas que duopolizam a publicidade digital, abocanhando 68% do total nos EUA, têm modelos de negócio que recompensam usuários e sites que ajudem a trazer tráfego para os seus inventários. Um tráfego que tende a ser tanto maior quanto mais escandalosa a postagem, ainda que falsa.

FACEBOOK

Para o analista Frederic Filloux, "deixando de lado a necessidade de dar fim ao seu pesadelo atual de relações públicas", devido às acusações de que ajudou a eleger Trump, "o Facebook não tem interesse objetivo em corrigir seu problema de notícias falsas". Ou seja, não tem interesse em afugentar seus consumidores com informações verdadeiras -e muitas vezes desagradáveis.

Daí a proliferação de sites com notícias retumbantes e falsas sobre a eleição americana, criados às dezenas por jovens da Macedônia em busca de audiência nos EUA. A maioria era pró-Trump, mas não havia motivação política; o Facebook, segundo os jovens, paga quatro vezes mais por leitor americano.

Apesar do ceticismo quanto ao interesse objetivo do Facebook e da primeira reação de Zuckerberg, que chamou de maluca a hipótese de que notícias falsas tenham afetado a eleição, a plataforma começou a se movimentar, buscando parcerias com o jornalismo profissional.

Estimulou a formação de uma rede internacional de checagem de fatos ligada ao Instituto Poynter para Estudos de Mídia (EUA), que na reta final acrescentou, além de checadores independentes, organizações como a rede de televisão ABC e a agência Associated Press.

Na virada do ano, a equipe começou a confirmar ou refutar informações veiculadas na rede social, um experimento ainda em fase de testes. O Google promove ação paralela em seu serviço de buscas, também com checadores, tendo estreado a iniciativa na quarta-feira (15) em países da América Latina, entre os quais o Brasil.

O foco da atenção política ocidental, de todo modo, aos poucos deixa os EUA e se volta para a União Europeia, onde França e Alemanha têm eleições marcadas para abril e setembro, respectivamente.

Na primeira semana de fevereiro, Facebook e Google lançaram em Paris um projeto conjunto de checagem de fatos, chamado CrossCheck, abrangendo 15 veículos franceses de jornalismo, como a agência France Presse, o canal de notícias BFM e os jornais "Le Monde", "Les Échos" e "Libération".

O CrossCheck entra no ar no dia 27 de fevereiro. Na Alemanha, já em meados de janeiro, às pressas e ainda sem o Google, o Facebook lançou projeto semelhante depois de uma escalada de alertas públicos, inclusive da chanceler Angela Merkel, contra os vários sinais de notícias falsas na plataforma.

Assustados com a ascensão da extrema-direita e com as votações nos EUA e no Reino Unido, políticos alemães ameaçam os gigantes da tecnologia com multas e mudanças legislativas. Entre as falsidades já constatadas estão fotos de Merkel com um suposto terrorista e elogios de um líder do Partido Verde a um refugiado que cometeu estupro e homicídio.

Em discurso no Parlamento, a chanceler alemã lembrou que "o populismo e os extremismos políticos estão crescendo nas democracias ocidentais". Em seguida, resumiu: "As opiniões não são mais formadas como há 25 anos. Hoje temos sites falsos, reforçando opiniões com certos algoritmos, e temos de aprender a lidar com eles".

De sua parte, os jornais alemães, que nos últimos três anos viram ressurgir nos discursos extremistas a expressão "Lügenpresse", imprensa mentirosa, clichê usado historicamente por Hitler, já se armam para o combate.

NELSON DE SÁ, 56, é repórter especial da Folha. Assina a coluna "Toda Mídia" e o blog Cacilda no site do jornal.


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