Folha de S. Paulo


Quem são os leitores da ficção brasileira contemporânea?

RESUMO Neste híbrido de ensaio e reportagem, o escritor paulistano vai em busca da resposta à inquietação que acossa muitos de seus pares: quem lê os autores brasileiros contemporâneos? Ele descobre espécimes de um fiel público jovem, na casa dos 20 anos –uma confraria que não exibe a veleidade de passar à escrita.

Adriano Vizoni - 20.jul.2012/Folhapress
Alguns dos selecionados para a edição especial da revista Granta com os 20 melhores jovens escritores brasileiros
Alguns dos selecionados para a edição especial da revista Granta com os 20 melhores jovens escritores brasileiros

Os números são sempre desanimadores. Num país com 27% de analfabetos funcionais, nem os alfabetizados têm o costume de ler. Nesse contexto, o que sobra para o autor brasileiro contemporâneo, esse ser tão marginalizado?

No meio literário, mantém-se o palpite (nem tão sarcástico) de que o número total de leitores de literatura brasileira contemporânea seja o mesmo da média das tiragens: 3.000. Desses, a imensa maioria é formada pelos próprios autores, por editores e jornalistas. Mesmo dentro do cenário acadêmico, nas faculdades de letras, não se conhece bem a literatura produzida hoje no país. Se é uma falácia dizer que escritores não são lidos por seus pares, mais correto parece ser inferir: os escritores são lidos apenas por seus pares.

"Eu também escrevo." Eis a frase que um autor provavelmente mais ouve de seus leitores. Por se tratar de uma arte pautada por conhecimentos técnicos discutíveis (diferentemente da música, por exemplo), a literatura em teoria pode acolher qualquer alfabetizado. E como consensual a ideia de que um grande escritor deve ser um grande leitor, qualquer apaixonado pela leitura se sente impelido a fazer o salto para a autoria.

"Conhece algum leitor de autores brasileiros contemporâneos que não tenha ele mesmo pretensões literárias?", perguntei à minha amiga escritora Simone Campos –como décadas atrás se perguntava "sabe quem está vendendo pó?" (O pó sempre foi mais fácil de se encontrar). Na busca por leitores anônimos, cheguei a abordar uma colega de academia (de ginástica, não se engane), que eu sempre via com um livro. "Quais autores brasileiros atuais você lê?" Ela pensou por um tempo, procurando nomes. "Comprei o livro do Julián Fuks... mas me roubaram." Foi tudo o que conseguiu achar (ou perder). Na ocasião, ela lia a italiana Elena Ferrante, coqueluche da hora com sua tetralogia napolitana.

Mas não haveria um pequeno percentual que acompanha a safra brasileira recente, não escreve –ou ao menos não trabalha (ainda?) com isso? Uma boa resposta tem vindo das redes sociais. Hoje, um escritor ativo no Facebook logo identifica meia dúzia de nomes "reincidentes", uma turma sempre a postos para divulgar lançamentos, comentar as resenhas e discutir com os próprios autores, mas que ainda não desempenha papel preciso no meio. São os leitores perfeitos... ou quase.

Aqui cabe um detalhamento do foco da "investigação" que move esse texto: falamos de ficção literária, de literatura de densidade estética. Isso porque na literatura comercial brasileira, já se tornou comum ver milhares de fãs juveníssimos a formar filas em bienais, acompanhando seus autores favoritos como ídolos pop.

O estudante Iuri Keffer é um desses. Aos 20 anos, está migrando das obras juvenis e comerciais para as mais densas. Começou a ler por ser fã de terror; nas rodas da literatura de gênero, encontrou jovens autores que se promoviam nas redes sociais.

Essa possibilidade de proximidade foi o que o seduziu na literatura brasileira. Morando em Vitória (ES), nunca encontrou uma cena local efervescente. Por isso, viajou até o Rio para estar presente num lançamento da autora de títulos juvenis Tammy Luciano, uma de suas favoritas. Hoje também de olho numa eventual carreira de escritor, ele mergulha nas páginas mais exigentes de jovens como Luisa Geisler, Sheyla Smanioto e Rafael Gallo.

Tornou-se amigo de vários autores pelas redes sociais e participa das discussões, mas ainda observa perante essa literatura uma posição de humildade. "Às vezes, pego alguns trechos do livro da Luisa e não entendo nada. Mas deixo guardados para quando for um leitor mais experiente", brinca.

CRÍTICA

Pouco mais velho do que Iuri, o carioca Mateus Pinheiro, 22, estudante de jornalismo, é quase onipresente nos fóruns virtuais sobre a literatura brasileira atual, assim como nos lançamentos e debates do Rio. De passagem por São Paulo, marcou conversas com alguns de seus autores favoritos, como Antonio Xerxenesky e Ricardo Lísias.

Foi nessa ocasião que o encontrei. Era dezembro, e ele dizia ter lido 85 títulos em 2016. A centena cheia seria batida antes do réveillon, garantia o jovem.

Mateus costuma ser bastante incisivo na forma como expressa seus gostos. Criou até uma página de pequenas críticas no Facebook, a Resenha de Bolso (facebook.com/resenhadebolso), em que analisa obras atuais em poucas linhas e dá sua nota.

Eis, aliás, outra fronteira mal delimitada da cena literária de hoje: aquela que separa a crítica do leitor. Com a extinção progressiva dos suplementos literários (e da mídia impressa como um todo), a maior parte das resenhas está nas mãos de amadores, leitores apaixonados que criam blogs e vlogs ou usam a rede social Skoob para discutir seus tomos favoritos, muitas vezes de maneira absolutamente passional e pouco consistente.

Não parece ser o caso de Mateus. Oriundo de uma família em que pouco se lia, passou a fazê-lo na adolescência por conta do bullying que sofria no colégio. Começou pela literatura policial e, depois de descobrir Rubem Fonseca, passou para a produção nacional contemporânea. Alguns de seus autores favoritos agora são Victor Heringer, Elvira Vigna e Vanessa Barbara.

São nomes também prezados por Arthur Tertuliano, 29, recifense radicado há dois anos em São Paulo. Formado em direito, fez mestrado em estudos literários. Na capital paulista, seu primeiro emprego foi como vendedor da Livraria Cultura. "Aproveitava as folgas, o horário de almoço para ler, e os outros vendedores todos estranhavam. Diziam que quando não estavam trabalhando não queriam nem ver livro."

Arthur afirma ter lido "poucos" livros em 2016: 101 até o começo de dezembro. "Foram 349 em 2015", contabiliza, incluindo na aritmética juvenis e infantis. Mesmo sendo um leitor voraz, ele não tem nenhum romance na gaveta. Já pensou em se arriscar nas belas letras, publicou resenhas e escreve para o site Posfácio (posfacio.com.br). Atualmente, não nutre maiores pretensões no meio. "É tão bom ser só leitor, não precisar frequentar eventos literários."

Já em Quatiguá (PR), a professora de ensino médio Sandriele Bueno, 27, foi uma rara estudante de letras seduzida pela literatura brasileira contemporânea. "Até começar a graduação, nunca tinha lido um livro", conta ela, lembrando que escolheu o curso de letras pela facilidade com o inglês.

Na faculdade, descobriu "Contos Negreiros", de Marcelino Freire, que a fisgou pela fluidez da língua. Aprofundando-se na obra de Marcelino, foi atrás dos "amigos" do escritor pernambucano, o que basicamente estendeu a ela todo o espectro de autores vivos do país. Entre seus prediletos encontram-se hoje Paulo Lins, Milton Hatoum e João Anzanello Carrascoza.

Personagem difícil de encontrar, totalmente fora do meio, é a paulista Vivianne Wakuda, 29, grande revelação como confeiteira. Fã de autores como o britânico Neil Gaiman (conhecido pela série de quadrinhos "Sandman"), passou a privilegiar a ficção nacional depois de ler Ana Paula Maia e João Gilberto Noll. Em noites de autógrafo, traduz seu apreço pelos compatriotas em deliciosos bolos e macarons. "Não escrevo. Só tenho mesmo o hábito de ler. Se for para lançar um livro, será de receitas", diverte-se ela, a leitora ideal.

Nessa busca por "leitores perfeitos", cruzou meu caminho mais um punhado de personagens... mas só um punhado mesmo. Cogitei conversar com um ou outro, mas pesquisas ligeiras revelavam livros de contos já publicados, coletâneas de poemas no prelo.

Muitos colegas escritores indicaram bons nomes, que de fato eram grandes leitores, mas que só faziam incursões esporádicas pela literatura nacional recente. Quem dera encontrar um leitor pipoqueiro, um traficante, um pastor evangélico... talvez fosse tarefa para um jornalista mais hábil. Ou utópico.

De toda forma, esses perfis atestam que a literatura brasileira ainda resiste –e existe. Que grandes leitores se tornem autores não é motivo para queixa. Há de haver espaço para todos, desde que o meio continue a ler a si mesmo. Pessoalmente, prefiro que a literatura expanda seus horizontes.

Não por acaso, me casei com um desses animais raros, um chef londrinense que é um glutão das letras contemporâneas. Quando nos conhecemos, ele nunca havia lido um romance meu. Ao descobrir que eu escrevia, saiu-se com esta: "Sou fã do João Paulo Cuenca." (Bem, ninguém é perfeito.)

SANTIAGO NAZARIAN, 39, é autor de oito livros, entre eles "Mastigando Humanos" e "Biofobia" (Record).


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