Folha de S. Paulo


Livro desmonta imagem romântica de Edward Snowden

RESUMO Em livro, jornalista americano tece retrato menos benevolente do ex-analista da NSA Edward Snowden do que o esboçado pela opinião pública desde que ele vazou documentos secretos. O personagem surge como um mitômano cujas denúncias (algumas legítimas) serviram a interesses de antagonistas dos Estados Unidos.

Reprodução de vídeo
Edward Snowden em entrevista ao jornal britânico
Edward Snowden em entrevista ao jornal britânico "The Guardian*

Quem visita o site da Anistia Internacional, entidade que é referência global em direitos humanos, encontra uma petição pelo perdão oficial do presidente americano a um jovem analista de sistemas que trabalhava para a NSA (Agência de Segurança Nacional, na sigla em inglês).

O enunciado da campanha, "Edward Snowden é um herói, não um traidor", reflete à perfeição a imagem propagandeada pelo influente estrato social autodenominado progressista e replicada pelo bastião liberal da cultura pop, Hollywood.

O agora ex-analista, responsável pelo maior roubo e vazamento de documentos secretos da história da espionagem, expôs em 2013 o funcionamento de programas de vigilância do governo de seu país e de aliados. Revelou, entre outras coisas, como era feito o monitoramento de comunicações de cidadãos americanos e estrangeiros, inclusive de líderes de países como Alemanha, França e Brasil. Disse tê-lo feito por uma questão de consciência.

Virou alvo de processo e teve sua história retratada num documentário vencedor do Oscar ("Citizenfour", de Laura Poitras, 2014) e em um filme do diretor e teórico da conspiração Oliver Stone ("Snowden", 2016).

Hoje um hóspede protegido pelo governo de Vladimir Putin, em Moscou, Snowden aproveita entrevistas e participações virtuais em fóruns para acusar os EUA de serem um Leviatã num inferno de vigilância sem fim.

Seus detratores o classificam, como a Anistia lembra, de traidor. A imagem pegou parcialmente: uma pesquisa de 2014 do instituto Pew mostrou que a maioria dos americanos aprovava o vazamento, mas que o governo deveria processá-lo ainda assim.

Raramente os críticos, usualmente identificados pelos defensores de Snowden como protofascistas, se valem de fatos para elaborar sua acusação; na era da pós-verdade, o que importa é a crença numa versão.

Um livro recém-lançado nos EUA, "How America Lost its Secrets" [Knopf, 368 págs., R$ 84,51, R$ 46,76 em e-book na Amazon] (como a América perdeu seus segredos), ajuda a qualificar o debate. Nele, o octogenário jornalista investigativo Edward Jay Epstein opera uma dissecção da figura romantizada de Snowden e de seus feitos.

O resultado é devastador para o ex-analista, ainda que o autor reconheça que o vazamento tenha tido a virtude de alertar para os abusos que a capacidade de vigilância dos governos permite.

Epstein sugere uma abordagem institucional para o problema, com maior poder de supervisão, pelo Congresso, das práticas de monitoramento empregadas por agências e órgãos do Executivo. Ou seja, o contrário do que Snowden e outros ativistas, como o fundador do site WikiLeaks, Julian Assange, preconizam.

MITÔMANO

Boa parte do livro é dedicada à obscura carreira de Snowden até o estrelato global –e encontra indícios de que esse sempre foi o objetivo do ex-analista. Epstein descreve a mitomania do personagem, hoje com 33 anos. Ele mentiu em praticamente todos os momentos rastreáveis de sua vida.

Bom repórter, o autor usa documentos tanto para mostrar que Snowden não abandonou os estudos aos 15 anos por sofrer de mononucleose (como alega) quanto para refutar a afirmação do ex-analista de que foi consultor sênior da CIA (Agência Central de Inteligência norte-americana), para ficar em apenas dois exemplos.

Com um tom didático e algo elíptico, decorrente talvez de sua longa experiência como professor universitário antes de se dedicar só a livros e artigos, Epstein traça um retrato saboroso de Snowden como um "geek" que vivia imerso em fantasias de grandeza –e as publicou por anos sob o pseudônimo True HooHa no site Ars Technica.

Snowden tentou sem sucesso ser modelo "incrivelmente sexy", segundo se descrevia em fotos postadas na internet, e recruta das Forças Especiais, entre outras coisas. Sempre culpou superiores por rejeições na carreira.

A passagem dele pela CIA é um ponto central dessa parte da narrativa. Snowden obteve o emprego de técnico de comunicações sem apresentar as qualificações mínimas, exceto talvez o fato de ser neto do almirante Edward Barrett, que trabalhava no alto escalão da inteligência militar do Pentágono.

Após passar dois anos em Genebra, ele foi instado a se demitir para não ser processado, depois que a CIA descobriu que ele tentara acessar dados secretos em 2008. Ironicamente, o paternalismo e as regras de sigilo vigentes esconderam o caso de seus futuros empregadores, que sofreram as consequências.

Estabelecido o perfil de Snowden, o autor avalia as consequências do vazamento, em 2013, de informações secretas. Quatro anos antes, o então técnico de comunicações havia perdido o posto na CIA, mas não a autorização de segurança de alto nível que todo funcionário da agência tem.

A credencial é valiosa para empresas que prestam serviços em áreas sensíveis do governo americano, pois acelera o começo das atividades dos trabalhadores terceirizados nos órgãos públicos. Sem ela, o processo para autorizar o acesso do novo funcionário leva meses.

Foi assim que Snowden acabou na Dell, gigante dos computadores, que o postou como administrador de sistemas na NSA. A Agência de Segurança Nacional, fundada em 1952, coordena todos os esforços de coleta e análise de comunicações no país e no mundo, distribuindo o que for relevante para outras agências.

Como administrador de sistemas no Japão e, depois, no Havaí, Snowden travou contato com procedimentos que considerava abusivos, mas principalmente com falhas de segurança que permitiam a credenciados copiar segredos de Estado sem serem reconhecidos.

Até aqui, Epstein não questiona as intenções de Snowden, que se apresenta ao mundo como um "whistleblower" ("aquele que apita", jargão inglês para informante) preocupado com a privacidade de todos. Mas todo o seu comportamento posterior mostra que ele acabou sendo, no mínimo, um desertor útil a adversários dos Estados Unidos.

Um exemplo claro disso está na primeira leva de documentos passados por Snowden a jornalistas a serviço do britânico "The Guardian" e do americano "Washington Post". Lá só há duas denúncias de interferência do governo na comunicação de cidadãos americanos –o tipo de acusação que deu a ele status de herói.

Mais: Snowden buscou ter acesso a mais segredos quando deixou a Dell e aceitou trabalhar por um salário menor na empresa Booz Allen. Isso porque ela manuseava na NSA documentos com nível de segurança 3, o mais alto, enquanto tudo o que ele havia roubado enquanto trabalhava para a Dell era de níveis 1 e 2.

ATIVISTA INFILTRADO?

Sua última ação ocorreu em exíguas cinco semanas, quando penetrou o maior nível possível de sigilo da NSA em sua unidade havaiana. Buscava, como disse depois, as listas com os alvos da agência nos países adversários, como Rússia e China, mas para isso precisava de 24 senhas de que não dispunha.

Epstein tende a acreditar que ele não trabalhou sozinho, ao contrário do que Snowden diz, até porque no submundo "geek" ele era um conhecido ativista contrário às políticas dos seus empregadores. Isso pode ter chamado a atenção de serviços de espionagem estrangeiros, além de lhe render aliados.

O mais notório deles é Assange, até hoje retido na embaixada do Equador em Londres para evitar ser extraditado para a Suécia, onde é acusado de crimes sexuais.

O livro detalha a relação do ex-analista com Assange, que o ajudou a chegar à Rússia, e o balé para o qual chamou para dançar os jornalistas envolvidos na divulgação de seus segredos. Esses, por sinal, surgem mais como instrumentos do plano de Snowden, ainda que estivessem legitimamente atrás de um furo.

O mais célebre dos jornalistas, Glenn Greenwald, ganhou um prestigioso prêmio Pulitzer pelas revelações, mas em seguida aderiu ao jornalismo panfletário bem ao gosto dos nichos que se consideram progressistas. Morador do Rio, ele abriu uma filial local de seu site, dedicado em boa parte a admoestar a mídia brasileira, que considera parcial, e o governo Temer, tachado de golpista.

Falando em Brasil, o monitoramento de Dilma Rousseff pela NSA, que rendeu uma crise diplomática, não é citado no livro, ao contrário do grampo sobre personagens de mais relevo, como a chanceler alemã, Angela Merkel.

A leitura instrui sobre falhas na inteligência ocidental e sobre como funcionam os mecanismos da espionagem global, relacionando a realidade com o que se acostumou a ler nos romances do britânico John Le Carré.

Especula-se sobre a motivação de Snowden. Seria ele um agente da Rússia ou da China? Teria sido recrutado sob uma falsa bandeira por um terceiro? Teria recebido ajuda de um agente inimigo que ainda está na NSA?

As formas como serviços de espionagem chegam às "toupeiras", os agentes infiltrados no exterior, sugerem que não seria tarefa árdua cooptar o ex-analista, mesmo que não fosse essa sua intenção inicial –basta assistir a um episódio da série de TV "The Americans" para saber como essas abordagens ocorrem.

O fato de ele ter sumido por 11 dias em Hong Kong, transportando segredos antes de divulgar uma ínfima parte deles à imprensa, permanece um mistério. E sua destinação final, Moscou, soa quase como confissão de culpa.

Ainda assim, Epstein fica apenas nas hipóteses. Crê que o envolvimento de Snowden com jornalistas dificilmente teria sido aprovado pelos russos, mas também conta como "toupeiras" manipularam a KGB soviética na Guerra Fria: o que interessa, ontem e hoje, é o prêmio.

E esse veio na forma de um incontável número de segredos de inteligência que o governo americano admite estarem em mãos russas agora, por mais que Snowden tenha dito que não os repassaria.

O ataque de hackers russos na eleição americana de 2016, mesmo que posterior à conclusão do livro, vem à cabeça do leitor como um provável efeito das novas habilidades moscovitas. O fato de o WikiLeaks de Assange ter sido instrumental no vazamento de informações prejudiciais ao Partido Democrata, assim como sua promessa de interferir em favor da candidata à Presidência francesa que agrada ao Kremlin, Marine Le Pen, só engrossa o caldo de suspeitas.

Epstein discorre sobre outros danos do vazamento. Um dos programas de monitoramento de mensagens na internet teria evitado 45 atentados terroristas entre 2008 e 2013, e agora é inútil por ter sido tornado público. Movimentos para a anexação russa da Crimeia, na Ucrânia, em 2014, passaram sob o radar ocidental.

Snowden não recebeu o autor, o que é quase irrelevante dado que toda entrevista com ele passa por uma censura prévia de perguntas. Isso poderia complicar a defesa do que o ex-analista já disse ser "a verdade", em especial se essa for confrontada com os fatos nada alternativos apresentados por Epstein.

E "o que é verdade?", vale perguntar, emulando Pôncio Pilatos ao julgar Jesus. Como no relato religioso, parece se tratar, para os seguidores de Snowden, de uma questão de fé.

IGOR GIELOW, 43, é repórter especial da Folha.


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