Folha de S. Paulo


A capital portuguesa era uma cidade global no século 16

Numa mansão inglesa, em Oxfordshire, foram descobertos pelas historiadoras Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe, em 2009, dois quadros pintados por um artista holandês anônimo. Datados entre 1570 e 1620, retratam uma rua movimentada onde se veem animais exóticos, homens, mulheres e crianças, negros e brancos, a cavalo ou a pé, a conversar ou a negociar.

Essa via cosmopolita foi identificada como sendo a rua Nova dos Mercadores, principal área comercial e financeira da Lisboa dos séculos 16 e 17, antes da destruição provocada pelo terremoto de 1755.

Essa descoberta, e a investigação que se seguiu, deu origem ao livro "The Global City: On the Streets of Renaissance Lisbon" (a cidade global: nas ruas da Lisboa renascentista) e a uma exposição, de que as historiadoras são curadoras, prevista para o Museu Nacional de Arte Antiga neste início de ano.

Gschwend, que integra o Centro de História d'Aquém e d'Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa, e Lowe, que trabalha na Universidade Queen Mary de Londres, reconstituíram, a partir dos quadros, essa Lisboa renascentista, capital de um império que se estendia a África, Ásia e América. Era uma cidade rica e cosmopolita, com uma população de muitas nacionalidades composta por cristãos novos, judeus estrangeiros e por muitos escravos negros vindos da África, além de árabes. Um perímetro por onde circulavam facilmente produtos exóticos, desde louça chinesa até tecidos indianos, que não eram apanágio dos ricos, existindo em muitos endereços lisboetas.

QUADRO CORTADO AO MEIO

Um pormenor que se destaca no canto de um desses quadros é o desenho de um cão a atacar um peru. Sabe-se que essas aves foram trazidas da América para a Europa pelos portugueses, que daqui as levaram para a Índia e para outras partes do mundo, tornando-as uma espécie de "ave global", presente em todo lado. Este é, aliás, um dos aspectos que vão ser evidenciados na exposição homônima ao livro, pois uma das salas do museu abrirá alas aos "animais globais" –perus, elefantes, macacos, araras, papagaios– que foram conhecidos na Europa por causa dos Descobrimentos.

Mas o eixo central da mostra serão as duas metades da pintura que as historiadoras sabem ter sido originalmente um quadro só, de grandes dimensões, com dois metros de largura.

O quadro foi comprado em 1866 num antiquário inglês pelo artista e poeta Dante Gabriel Rossetti (1828-82), um dos fundadores do movimento dos pré-rafaelitas, que possivelmente teria ficado curioso ao ver nele a representação de muitos negros, o que não era habitual na época. As historiadoras acham também que terá sido o próprio Rossetti a cortar o quadro ao meio para que coubesse em seu quarto, onde também guardava uma coleção de porcelana chinesa e de laca japonesa.

CAI O PANO

O fim de 2016 foi marcado pelo anúncio do encerramento da mais icônica companhia lisboeta, o Teatro da Cornucópia, criado em 1973 por Luis Miguel Cintra (que se afastou dos palcos enquanto ator em 2015, após tornar público que sofria do mal de Parkinson) e por Jorge Silva Melo (hoje encenador da companhia Artistas Unidos).

Muito prezada na cena cultural lusa –o poeta Gastão Cruz certa vez a descreveu como "o verdadeiro Teatro Nacional"–, a Cornucópia apresentou o seu último espetáculo em dezembro, um recital a partir de textos de Guillaume Apollinaire.

Estavam no limite das capacidades financeiras e consideram já ter idade para ousar dizer que não sabem, nem querem, adaptar-se "a modelos de gestão que dificilmente se habituariam a cumprir". Depois de uma intervenção do presidente da República, ainda se especulou que poderiam vir a continuar se lhes fosse dado um estatuto diferente pelo Ministério da Cultura, mas mantiveram a palavra: "O Teatro da Cornucópia acaba no princípio do ano, na realidade já acabou. Não se tratará agora, portanto, de um estatuto de exceção, porque somos provavelmente exceção. A empresa dissolve-se nos próximos dias".

CAPITAL IBERO-AMERICANA

Passado e Presente - Lisboa, Capital Ibero-Americana de Cultura, uma iniciativa da União das Cidades Capitais Ibero-Americanas e da Câmara Municipal de Lisboa, inicia-se neste sábado (7), com a inauguração da exposição do artista mexicano Demián Flores, "Al Final del Paraíso", e o concerto "Canções para uma Festa", com a fadista Gisela João, a peruana Mariela Condo e a panamenha Yomira John.

Diz António Pinto Ribeiro, coordenador-geral da programação do evento que se prolonga até 22/12: "Não prometemos qualquer regresso à antropofagia, mas que é o início de uma grande festa, isso é, com certeza".

ISABEL COUTINHO, 50, é repórter do jornal português "Público".


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