Folha de S. Paulo


"A Alquimia na Quitanda" e as memórias da felicidade

Transformação, felicidade e inusitado, eis três experiências singulares com que "A Alquimia na Quitanda", recente publicação de um conjunto de crônicas escritas para a Folha, de 2005 a 2015, brinda todo leitor.

Talvez livro derradeiro, guarda o encanto de certa voz imorredoura, daquela que marca a experiência narrada por certo jogo infinito entre memória lembrada e memória esquecida. Ao fazê-lo, assegura a Ferreira Gullar a presença da palavra inapagável em constante trânsito da vida à arte e dessa à primeira. Solidariedade, assim o cronista-poeta intitulou sua penúltima crônica publicada na "Ilustrada", como convite a um suave convívio de pensamentos díspares aproximados: solidariedade faz-se, hoje, memória residual que fixa, na potencialidade do simbolismo da "alquimia na quitanda", uma das possíveis vias de continuidade e de permanência ensejadas por Ferreira Gullar para o Brasil contemporâneo.

Sob a transparência desse jogo entre memórias, ângulos obtusos e enigmáticos decifram-se e encontram, nos modos e formas de evocação a presenças estrangeiras, imagens exemplares de seu fazer múltiplo e interdisciplinar. Refiro-me à fertilidade de figuras francesas evocadas, a exemplo de Mallarmé em poemas como "Mancha" ("Barulhos"), Rodin, em "Muitas Vozes", bem como ao rastro de Marcel Proust, traçado nas crônicas, evidenciando a lição da memória inventada, captada do texto do autor francês.

No conjunto das crônicas, a presença desse romancista configura-se como matriz da arte que, aquém e além das operações de reinvenção e invenção de experiências vivenciadas e imaginadas, dilui toda distância entre gêneros, linguagens artísticas, campos simbólicos e não simbólicos, geografias e subjetividades, imprimindo, no suave convívio de vozes díspares harmonizadas, o prazer de novos territórios a percorrer. Nelas, o projeto prousteano da composição de certo arquivo vivo de memórias voluntárias e involuntárias apresenta-se como espetáculo do inusitado.

E, tradutor de espacialidades e temporalidades distintas aproximadas, Ferreira Gullar encanta o leitor nacional e transnacional de "A Alquimia na Quitanda" com a narrativa de vivências desdobradas do visto e do experimentado. Em uma palavra: memórias da felicidade emergem de fatos contados que seduzem pela evidência de memórias que, no rastro das memórias involuntárias de Marcel Proust, escapam ao controle do poeta-narrador. Crônicas como "Surto Filosófico", "Ah, Ser somente o Presente", "Alquimia na Quitanda" e "Arte como Alquimia" representam, cada uma a seu modo, faces diversas do caleidoscópio de incidentes distintos, mas convergentes no desejo de retraduzir sensações cotidianas experimentadas.

Retraduzir e reencantar, eis a certeza da felicidade alcançada e mediada pelo conjunto de memórias de natureza cultural, poética e artística, reunidas em "A alquimia da Quitanda"; como se, com base nesses lugares de memória, dizê-la a transformasse em matriz do nascimento da arte em Ferreira Gullar.

Espaço que desencadeia captações e sentimentos insuspeitáveis, a quitanda torna-se evidência de algo inenarrável, mas sedutor. E, justamente, é esta dificuldade do narrar que desencadeia, paradoxalmente, a tentativa de relatar o inusitado:

"Pode ser que, no final das contas, isso que vou dizer aqui não interesse a ninguém, mas é que, numa crônica em que falava das poucas coisas que lembro, esqueci de mencionar uma das que mais me lembro: as bananas que, às vezes, ficavam sem vender e apodreciam na quitanda de meu pai.

Aliás, se bem me lembro, não era na quitanda dele e, sim, na de uma mulata gorda e simpática que, na rua de trás, vendia frutas: bananas, goiabas, tamarindo, atas, bagos de jaca e manga-rosa. Mas o que é verdade ou não, neste caso, pouco importa, porque o que vale é o momento lembrado (ou inventado) em que as bananas apodrecem. E mais que as bananas, o que importava era seu apodrecer, talvez porque o que conta, de fato, é que ele se torna poesia.

Essas bananas me vieram à lembrança quando escrevi o 'Poema Sujo'. Jamais havia pensado nelas ao longo daqueles últimos trinta anos. Mas, de repente, ao falar da quitanda de meu pai, me vieram à lembrança as bananas que, certo dia, vi dentro de um cesto, sobre o qual voejavam moscas-varejeiras, zunindo.

[...]

E essas bananas outras –não as da quitanda, mas as do poema– inseriram-se em mim, integraram-se em minha memória, em minha carne, de tal modo que são agora parte do que sou."

Com efeito, no "Poema Sujo", referido nessa crônica, a pluralidade de tons como expressão da mistura e a progressiva transformação traduzida pelo apodrecer das bananas corresponde à transmutação em que a passagem de uma tonalidade a outra ou a outras apaga a memória, tornando-se mancha residual gravada sobre a página. Ferreira Gullar antecipa esse aspecto em Poema sujo, quando diz:

"Na quitanda
o tempo não flui
antes se amontoa
em barras de sabão Martins
mantas de carne-seca"

Versos nos quais o gesto de "amontoar" retrai a passagem do tempo, perpetuando-o. Assim, a abrangência simbólica da quitanda, como lugar de transformações a perceber, encontra no processo da alquimia, desencadeada pelo apodrecer, o retraçar da cartografia teórica, crítica e poética do fazer de Ferreira Gullar; como se, produção da maturidade, o gênero da crônica tornasse possível ao poeta decantar a paisagem da intimidade, concedendo-lhe a legítima vivência das "Muitas Vozes":

o poeta empresta
às coisas
sua voz –dialeto–

e o mundo
no poema
se sonha
completo

Leia-se, sob esse "completo", a singularidade da vivência que, ao lhe conceder a dádiva da lucidez, faculta-lhe, igualmente, uma percepção outra da realidade circundante, do mundo e dos homens, articulada pela presença do inusitado. Nesse sentido, nota-se, na paisagem poética de Ferreira Gullar, que, além da consciência do indecifrável, comparece, em sua textualidade, o aflorar de captações insuspeitáveis, de infinita propagação do estado de felicidade. Lembram aquele "estado de graça" com que a romancista brasileira Clarice Lispector define a emoção estética sorvida da palavra sublimada.

Se a prática da rememoração faculta ao poeta transgredir fronteiras espaciais e temporais, reciclando a memória, o fazer-se disponível à espreita de transformações torna-o sensível à percepção antecipada de incidentes como felizes experiências a vivenciar. Desse modo, na crônica intitulada "Surto Filosófico", o desejo confesso de apagar o passado equivale ao vislumbrar do presente como arquivo vivo de memórias ainda a tecer; legitimam a alegria do dizer, multiplicando a busca desses momentos singulares concedidos pela arte:

"O poeta é aquele cara que se surpreende com o óbvio e, ao fazê-lo, torna-o surpreendente, pelo menos para si mesmo. Assim é que estou aqui maravilhado com a minha descoberta de que a memória é parte do presente que vivo e não apenas do passado que vivi. [...]
Suponhamos que vou escrever um poema que, porque ainda não o escrevi, não sei como será: estou entregue ao jogo do acaso e da necessidade. [...]
E então me espanto ao constatar que a memória nos ajuda a inventar a vida, a sepultar o passado, que, não obstante, aumenta a cada segundo.
A vida é também lembrar sem se dar conta disso"

Ferreira Gullar sublinha o ângulo inventivo da memória. Amostragem singular do fazer involuntário, "Surto Filosófico" tanto comprova a transparência das operações prousteanas efetuadas, quanto retorna à continuidade da presença de Mallarmé, no que se refere à dádiva do acaso. Logo, estabelecer a cartografia da felicidade, com base nos modos e formas plurais narrados nas crônicas citadas, evidencia a confluência na celebração da memória involuntária prousteana.

Transferência de gênero (da crônica para a poesia), transferência de imaginários (do francês para o cotidiano brasileiro) por uma singular transformação do Outro em Mesmo, a recepção prousteana por Ferreira Gullar, conquanto desdobra, relocaliza e reinventa a experiência da "madeleine", inclui-se, a seu modo, e certamente sem o saber, na releitura desse fato literário pela perspectiva filosófica e semiológica.

Imagens teórico-críticas sintetizadoras da palavra de Marcel Proust como "júbilo da experiência transubstancial" para Julia Kristeva, "floresta encantada da rememoração" para Walter Benjamim, "espaço de hesitação" ou "tierce forme" para Roland Barthes, a título de amostragem, encontram em Ferreira Gullar uma de suas vozes primordiais, que retraduzem a matriz da felicidade com base no elogio ao mundo infantil, como no poema "Memória":

menino no capinzal
caminha
nesta tarde e em outra
havida

Entre capins e mata-pastos
vai, pisa
nas ervas mortas ontem
e viva hoje
e revividas no clarão da lembrança

E há qualquer coisa azul que o ilumina
e que não vem do céu, e se não vem
do chão, vem
decerto do mar batendo noutra tarde
e no meu corpo agora
– um mar defunto que se acende na carne
como noutras vezes se acende o sabor
de uma fruta
ou a suja luz dos perfumes da vida
ah vida!

A Alquimia Na Quitanda
Ferreira Gullar
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Nesse poema, a configuração do "menino" como imagem exemplar do retrabalhar de distintas temporalidades e espacialidades aproximadas pelo metaforismo do "azul", incidindo no ressurgir de um novo ciclo vital, traduz essa paisagem intervalar, onde presente e passado, vida e morte processam a transformação e a alquimia; como se, território de neutralidade, a intensa poeticidade soprada no menino operasse um novo aflorar existencial. Na crônica intitulada "Arte como Alquimia", ao dizer: "Quando digo que o artista transforma sofrimento em alegria, estou me referindo à complexa alquimia que está na essência de toda arte verdadeira. [...] alegria de criar a beleza do espanto [...] que é, em suma, a necessidade de acrescentar ao mundo, que já tem tanta beleza, mais uma coisa bela. Isso porque a vida, com tudo o que nos oferece, não basta".

O acento posto na transformação confere legitimidade à transmutação como certeza da incompletude vital compensada pela arte. Memórias da felicidade como dádiva da transformação e da alquimia de vivências sublimadas aquém da vida e além da morte.

MARIA LUIZA BERWANGER DA SILVA é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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