Folha de S. Paulo


Um olhar museológico da exposição "Adornos do Brasil Indígena"

Ao propor o tema adornos para argumentar sobre as múltiplas faces da resistência das sociedades indígenas deste país, a partir de um discurso expositivo, o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo teve a intenção de dar protagonismo a uma expressão cultural que é comum entre os indígenas e os não indígenas e, ao mesmo tempo, responder ao convite do SescSão Paulo referente à elaboração de projeto direcionado para o tratamento de questões brasileiras. Essa intenção encontrou no importante acervo etnográfico do museu diversos caminhos para a seleção curatorial e refinamento do enfoque temático.

A esse processo curatorial, desde seu início, somou-se a perspectiva de agregar no contexto das argumentações e opções, obras de artistas contemporâneos diretamente envolvidos e sensibilizados com as problemáticas indígenas, selecionados pelo curador Moacir dos Anjos, que integrou a equipe coordenadora do projeto de forma compartilhada com os profissionais do MAE do campo da museologia: Carla Gibertoni Carneiro, Ana Carolina Delgado Vieira e Francisca Aída Barbosa Figols. A trajetória de concepção e realização deste projeto expositivo contou, ainda, com inúmeros profissionais que permitiram que os argumentos conceituais se transformassem em um circuito expositivo consistente e em diferentes diretrizes para a mediação educacional.

Partimos da premissa de que o território brasileiro é também indígena. Os marcos são contundentes em nossa história e os sinais evidentes na cartografia deste país. Com números expressivos, mas sempre em movimento, contamos com populações que somam 900 mil pessoas, de 305 etnias e que falam 274 línguas (IBGE, 2010). Essa exposição apresenta adornos de algumas etnias, localizadas em diferentes regiões do país, mas é importante sublinhar que outras regiões também contam com a presença destas comunidades, cujos vestígios remontam ao passado pré-colonial e os testemunhos contemporâneos mostram uma profusão de manifestações culturais vivas, singulares, mas ameaçadas. A importância dessa história indígena está representada na exposição por artefatos e documentos etnográficos das etnias Arara, Bororo, Canela, Guarani, Ka´apor (Urubu), Kabisiana, Kaingang, Kalapalo, Karajá, Kaxinawa, Kisêdjê, Krahô, Maku, Nambikwara, Rikbaktsa, Tapirapé, Tariana, Ticuna, Tukano, Walmiri Atroari, Waujá, Xikrin, Yanomami que, ao lado de vestígios arqueológicos Marajoaras, Tapajônicos e Sambaquieiros, evidenciam uma exuberância de formas, técnicas, cores, entre muitas outras características, permitindo o desvelamento de diversos rotas de fruição sobre os cenários culturais deste país.

Optamos por estabelecer caminhos de convergência para os dilemas da resistência indígena em torno de três eixos temáticos: o corpo adornado como suporte de resistência; as celebrações como contextos de grande visibilidade dos adornos e, ao mesmo tempo, de reforço à coesão identitária, implicando em momentos de resistência comunitária; os testemunhos de longa duração, evidenciados pelos vestígios arqueológicos, documentando que os adornos sempre pautaram a trajetória das sociedades indígenas deste território.

Esses caminhos construídos pelos adornos indígenas, por sua vez, estão entrelaçados no circuito expositivo por obras de arte contemporânea e por documentos audiovisuais que permitem momentos de inflexão sobre os contrapontos entre a nítida presença indígena e suas rotas de empoderamento no âmbito da sociedade nacional e as reiteradas e seculares ameaças que insistem em não enxergar esses caminhos e essas presenças.

O MAE-USP participa desta iniciativa expositiva, em cartaz no Sesc Pinheiros, que conta com desdobramentos educativos e de ação cultural e, concomitantemente, para além da formação de profissionais e pesquisadores, o museu realiza pesquisas e ações curatoriais compartilhadas com sociedades indígenas, preserva acervos coletados por importantes estudiosos que atuaram (e atuam) no país, estimula a revitalização museológica de museus responsáveis por acervos congêneres, milita em frentes comunitárias voltadas à criação de museus e escolas indígenas, ministra cursos de formação para professores do ensino médio e fundamental sobre as temáticas aqui abordadas, entre outras ações implícitas às responsabilidades universitárias.

A instituição, considerando os seus vetores de acervo e de pesquisas, conjuga as ações acadêmicas e museológicas relativas às referências contemporâneas e vestígios do passado provenientes da trajetória cultural indígena da América e do Brasil em particular, com as manifestações e expressões da dialética histórico-cultural das relações Brasil-África e os vetores da cultura europeia, especialmente das heranças da antiguidade greco-romana e das sociedades do Oriente Próximo. Esse acervo plural, no que se refere a sua composição e potencialidade científica e, singular, enquanto referência para a construção da história cultural deste país, assume ainda outros patamares de importância quando projetado para o ensino em suas diferentes modalidades e para ações museológicas e de difusão científica.

Ao direcionarmos um olhar museológico para a trajetória do projeto "Adornos do Brasil Indígena: Resistências Contemporâneas" verificamos que todos somos responsáveis pelas construções desses caminhos de resistência e que, neste contexto, os museus têm o compromisso explícito pela preservação e divulgação das expressões culturais dessas sociedades e, sobretudo, por tornar pública a presença indígena no território nacional.

MARIA CRISTINA OLIVEIRA BRUNO é diretora do MAE-USP.


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