Folha de S. Paulo


Adorno, arte e luta

Não é difícil encontrar boas razões para realizar a exposição "Adornos do Brasil Indígena: Resistências Contemporâneas". A mais imediata delas é tornar possível o compartilhamento de parte do acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, poucas vezes mostrado ao público.

O que talvez requeira alguma consideração seja o fato dessa coleção de adornos indígenas estar acompanhada, nessa mostra, de trabalhos de artistas visuais brasileiros. Afinal, essa é uma aproximação que pode produzir significados controversos. No pior dos casos, pode promover um entendimento dos primeiros a partir de critérios usados para validar os segundos, juntando-os espacialmente por motivos meramente formais. Em função desse risco reducionista, buscou-se percorrer outro caminho nessa exposição, menos calcado na vontade de avizinhar a todo custo o que é diferente e mais na identificação daquilo que amplia a potência de produções de naturezas diversas.

Para explicitar a linha mais geral desse percurso, é preciso lembrar que, de acordo com os dicionários, adorno é aquilo que enfeita ou embeleza alguém ou algo, realçando algumas de suas características. Nessa acepção, adornos não seriam da ordem do essencial, mas do suplementar. É difícil, porém, estabelecer os limites que podem separar, com precisão, o necessário do acessório. Limites que inclusive mudam com o passar do tempo e a depender de quem avalia e julga tal distinção. Ou que se tornam menos ou mais rígidos em função dos contextos específicos em que são considerados. Ademais, mesmo se uma dada categoria de adornos é eventualmente aceita como pertencente à ordem do essencial, isso não implica o reconhecimento repartido de seus significados.

É o caso do lugar paradoxal que adornos indígenas ocupam na disputa simbólica e material em torno do que significa ser índio no Brasil. Para os não-indígenas que exercem o poder de fato no país, o uso dessas pinturas e artefatos desenvolvidos em séculos de vida comunitária afirma um pertencimento ancestral somente às expensas de promover um distanciamento voluntário do que seria o Brasil contemporâneo. Nessa persistente narrativa colonizadora, os povos nativos destas terras seriam impedidos de ser, ao mesmo tempo, índios e brasileiros.

Mas é justamente por ocupar posição de destaque nesse discurso excludente que os adornos podem também ser tomados como instrumentos de resistência para pleitear a sustentação dos direitos que são próprios da ambígua condição identitária indígena no Brasil. Resistência que não é somente reativa frente a danos sofridos, mas de ativa afirmação de diferenças em relação ao outro que os promoveu e ainda promove.

Nesse contexto de disputa aberta, a exposição aproxima os usos que são feitos do adorno nas culturas nativas do Brasil e a tradição do adorno na tradição artística de povos não indígenas do país, promovendo laços e atritos entre formas de expressão e seus significados.

Exibindo trabalhos já existentes e outros inéditos, a exposição conta com a participação de Ailton Krenak, Anna Bella Geiger, Bené Fonteles, Carlos Vergara, Claudia Andujar, Delson Uchôa, Fred Jordão, Lygia Pape, Nunca, Paulo Nazareth e Thiago Martins de Melo. Todos exibem trabalhos que não querem meramente traduzir para outros contextos ou meramente descrever o que é feito pelos povos indígenas em seu cotidiano ou em seus rituais, mas que evocam, em imagens e gestos criados, a força simbólica que adornos podem exercer.

Não há nesse avizinhamento, portanto, intenção de criar hierarquias ou de propor paralelismos entre expressões tão distintas. Tampouco se quer apenas construir um ambiente de beleza ou de apaziguamento, a despeito do indisputado encantamento visual que o acervo indígena e trabalhos contemporâneos possam inspirar no visitante da mostra.

Busca-se, em vez disso, sugerir situações em que a presença simultânea de um e de outros em um mesmo espaço de exposição dê evidências do poder de resistência contido nos adornos do Brasil indígena, bem como da potência crítica que a arte brasileira que se aproxima deles pode possuir. Resistência que pode ser espiritual, posto que adornos são elementos de comunicação com as entidades que, em cosmogonias nativas, controlam o caos do mundo. Mas que pode ser física, posto que adornos também são, quando pintados em corpos ou exibidos em cabeças, braços e pernas, lembranças de que não existe outra maneira de viver a vida livre senão mantendo-se em estado permanente de luta.

MOACIR DOS ANJOS é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.


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