Folha de S. Paulo


A capital americana e o capital do presidente eleito

A cidade da qual Donald Trump comandará os Estados Unidos a partir de 20 de janeiro é território inimigo para ele. O presidente eleito só recebeu 4,1% dos votos no distrito de Columbia, onde fica a capital americana. Traumática para boa parte do país, em Washington a transição de poder significará também uma mudança drástica de estilo, depois do romance da cidade com Barack Obama e a primeira-dama, Michelle.

Obama chegou à Casa Branca em 2009, em meio ao pânico da crise financeira mundial, prometendo tornar a capital "cool" e o governo, sexy. O jeito cosmopolita do primeiro casal lhes dava o perfil ideal para o papel, num contraste com os antecessores, Bill Clinton e George W. Bush.

Por gosto e estratégia, os Obama incorporaram a cidade a seu marketing pessoal, ajudando a promover o renascimento do circuito gastronômico, do clássico cachorro-quente do Ben's Chili Bowl aos restaurantes do badalado chef espanhol José Andrés, de quem Michelle é fã declarada.

Em setembro, Obama concedeu a Andrés a medalha nacional de artes, mais alta honraria do governo. Ao mesmo tempo, o chef brigava na Justiça com Trump em torno de sua desistência de abrir um restaurante no recém-inaugurado hotel do bilionário em Washington, devido aos comentários daquele contra imigrantes mexicanos.

Apesar das vibrações negativas que aguardam o novo presidente, a capital poderá se beneficiar com Trump na Casa Branca, segundo Harry Jaffe, editor na revista "The Washingtonian". Cronista da cidade e autor de um livro fundamental para se entender as dinâmicas político-raciais de Washington, Jaffe prevê que o presidente eleito tem interesse político e de negócios em usar suas habilidades para valorizar a localidade. Com seus parques e áreas do governo, grande parte dela está sob jurisdição federal, portanto nas mãos do presidente.

PENSILVÂNIA, 1100

A 700 passos da Casa Branca, na mesma avenida Pensilvânia, o Hotel Internacional Trump é o exemplo mais próximo do potencial conflito de interesses entre o presidente e o homem de negócios. O hotel de luxo fica no antigo prédio do correio, uma construção clássica de propriedade federal e arrendada pelas organizações Trump. Uma das condições no contrato é a de que "nenhum funcionário eleito do governo" pode ter parte no negócio. Sob pressão, Trump anunciou que se dissociará de suas empresas para se dedicar à Presidência.

Seja como for, a avenida Pensilvânia tem um novo centro de gravidade. Os dourados, marca do estilo Trump, deram lugar a um tom mais sóbrio no hotel aberto em setembro, adaptando-se à arquitetura clássica de Washington. Mas a marca Trump, maior capital do bilionário, está lá.

PONTE AÉREA

Enquanto Obama fez questão de reforçar sua ligação com Washington, muitos duvidam que Trump de fato passe a morar na capital. Melania, a nova primeira-dama, já disse que a princípio ficará em Nova York para que o filho do casal, Baron, não tenha que deixar a escola no meio do ano letivo.

Primeiro presidente sem experiência na política e o mais rico da história, Trump se mudará para a Casa Branca sozinho, uma condição a que ele terá que se habituar. "Quer um amigo em Washington? Arranje um cachorro", diz a frase erroneamente atribuída ao presidente Harry Truman (1884-1972), mas que se tornou uma das sínteses mais famosas da capital.

NOVOS ARES

Nos anos Obama, Washington ficou mais jovem, rica e branca. Depois de chegar a responder por 70% da população local nos anos 1970 (quando se falava em "cidade chocolate"), os negros deixaram de ser maioria em 2012 (49,5%). A gentrificação acelerada embranqueceu certas áreas, gerando ressentimentos e benefícios.

Mas a leveza dos anos Obama, um dos raros presidentes a chegar à reta final sem um só escândalo, começa a virar história. Há poucos dias o bibliotecário da revista "Washingtonian" atendeu a um telefonema na Redação.

Era um leitor revoltado com a capa da mais recente edição, com uma foto de Obama dando adeus ao lado de Michelle. "Por que colocaram esses negros filhos da puta na capa?", quis saber o enfurecido leitor. Veteranos da revista, que existe desde 1965, dizem que isso jamais havia acontecido. Poucos dias antes, Trump anunciara um ícone dos supremacistas brancos como seu estrategista chefe.

MARCELO NINIO, 50, é correspondente da Folha em Washington.


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