Folha de S. Paulo


A vitória da obscenidade

RESUMO Artigo analisa a proliferação de uma retórica extremista até há pouco recalcada. Para entender o fenômeno, escreve o autor, é preciso estabelecer distinções internas em grupos que propalam ou referendam tais discursos (como o de eleitores de Trump) e repertoriar seu leque de temores e de concepções de classe.

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Algo comum ao Brexit e à eleição de Donald Trump é a disparidade entre pesquisas de opinião e urnas. Fonte de imprevisibilidade, o descompasso é em boa parte atribuível ao eleitor envergonhado, que não admite publicamente sua escolha. É interessante notar que, em ambos os casos, um elemento essencial foi a revolta contra aquilo que "todo mundo pensa" e, portanto, a insurgência do que "não se deve pensar" ou do que "não se diz" na frente dos outros.

É como se, mesmo já distantes do bom senso supostamente universal, os eleitores ainda não conseguissem admiti-lo em público. À medida que o sucesso de figuras como Trump, Nigel Farage (estrela da sigla britânica eurocética Ukip) e Marine Le Pen (presidenciável da Frente Nacional, denominação francesa de extrema-direita) leva o indizível para o primeiro plano e mostra a esses eleitores que eles não estão sozinhos, a tendência é vermos os envergonhados cada vez mais seguros de si –como já se observa nos casos de racismo que ocorrem nos Estados Unidos.

Um efeito colateral da ascensão de líderes assim é fazer seus admiradores se sentirem autorizados. Na Europa, nos EUA e no Brasil, esse tem sido um tema recorrente: a libertação em relação a um aparente consenso do politicamente correto opressor que impediria as pessoas de expressarem o que realmente estão pensando –que a culpa é dos imigrantes, que lugar de mulher é na cozinha, que os pobres não podem frequentar "nossos" espaços, que negros são inferiores, que bandido bom é bandido morto, que gays têm que apanhar e que bom mesmo era o tempo dos militares, por exemplo.

Obsceno é o nome daquilo que aflora quando se suspende tal interdição, e a obscenidade tem sido a tonalidade dominante do período atual –uma espécie de síndrome de Tourette em escala mundial.

No caso brasileiro, essa grande liberação do obsceno é o motivo pelo qual é impossível tratar o momento pós-impeachment como simples continuação do anterior. O governo Dilma caminhava na mesma direção do pacote de maldades em discussão, a pior das quais é a PEC 55 (do teto de gastos).

Mas uma comparação que se limite a olhar para a cabeça do Executivo não dá conta de que, de alguns anos para cá –e mais intensamente desde as mobilizações pró-impeachment–, haja uma maré crescente de obscenidade em todas as esferas do poder público, para não falar das ruas, bares, redes sociais e condomínios.

A atuação de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) à frente da Câmara e a série de chicanas que caracterizaram o processo de impeachment parecem ter dado reforço de legitimidade institucional a um espírito de vale-tudo até então predominantemente retórico.

Passamos assim das declarações de preconceito nas redes sociais e dos elogios públicos a torturadores ao juiz que autoriza corte de energia e som alto durante a noite contra adolescentes ocupando uma escola, ao governo de um Estado que decide não precisar mais de mandado judicial para ações policiais, a aumentos de salários em meio a debates sobre cortes na área social, a projetos de anistia para crimes que irrompem misteriosamente na pauta legislativa e a grupos de direita arregimentando bandos para desocupar escolas à força.

É verdade que muitas dessas coisas acontecem diariamente nas periferias, e que essa excepcionalidade permanente sempre foi o reverso do Estado de direito que parecia reinar nas áreas ricas, mas o que está em questão é justamente a impressão de que a transgressão comum nas bordas tem se tornado normal também dentro delas, e mesmo nas mais altas instâncias –o que não é um fato trivial e carece de explicação.

NUANCES

É preciso esforço de análise de tal obscenidade para entender, por exemplo, que identidades não são pacotes fechados. Se dizemos que ser muçulmano não torna ninguém terrorista, tampouco ser evangélico faz de alguém homofóbico.

Em geral, é preciso tomar unidades como "eleitores de Trump" ou "evangélicos" e decompô-las em quantos modos for necessário, atentando para os recortes distintos que as atravessam –por exemplo, entre lideranças e bases.

O fato de Trump ter conquistado áreas desindustrializadas e historicamente eleitoras dos democratas fez com que se responsabilizasse os homens brancos pobres, sistematicamente abandonados desde os anos 1980, por sua vitória. Mas se ignora o quanto foi expressiva sua votação entre os mais ricos. Nos EUA como no Brasil, onde a direita mais obscena tem mais adesão no topo da pirâmide social, é crucial perceber que a obscenidade não é exclusivamente um fenômeno de classe baixa.

Esquematicamente, poderíamos dizer que os dois tipos de obscenidades que aparecem de um recorte de classe têm origem em duas ansiedades distintas: a primeira, relativa à perda de privilégios; a segunda, à de direitos.

Entre os mais ricos, a obscenidade expressa o desejo de voltar à estabilidade "de antigamente". A instabilidade sentida pode ser mais imaginária do que real. O que importa é o medo de uma pressão democratizante que ponha as coisas em questão, contra a qual se busca uma autoridade capaz de "botar a casa em ordem".

Entre os mais pobres, a incerteza reforça a sensação de luta de todos contra todos, abrindo o terreno para identificação do outro (estrangeiro, minoria etc.) como inimigo. Por mais que se veja aí uma projeção imaginária, não se deve perder de vista sua base real: a experiência concreta da deterioração das condições de vida.

Não se trata de ignorar o quanto, por exemplo, o racismo está enraizado no eleitorado pobre norte-americano, nem o quanto os dois tipos de ansiedade podem se cruzar: seu próprio declínio faz o branco pobre enxergar o avanço de minorias como perda de privilégios. Mas fazer distinções é essencial para evitar lidar com um tipo de fenômeno como se trataria o outro –e, sobretudo, para não confundir o que é preciso combater com o que se deve desarmar.

Os riscos da confusão ficam claros quando atentamos para quem o eleitorado de Trump identificava como elite: não o seu candidato bilionário, mas os liberais da mídia e da metrópole, vistos ao mesmo tempo como insensíveis às agruras dos grotões e patrulhadores do bom senso que desqualificavam o discurso dos excluídos como ignorante, incoerente e obsceno.

Brexit, eleições americanas e a epidemia mundial de obscenidade são inseparáveis do fato de que a economia patina há quase uma década e de que há uma crise de legitimidade e representação generalizada –lá como cá, o absenteísmo foi o real vencedor–, para não falar de uma degradação crescente do ambiente e das condições de reprodução social em geral. Os democratas tinham em Bernie Sanders um pré-candidato que abordava diretamente tais problemas, e que pesquisas sugeriam ser capaz de derrotar Trump.

A estratégia com Hillary foi, ao contrário, combater o discurso sem falar do real: condenar a obscenidade sem ver que era justamente ela que o eleitorado estava abraçando, mas sem prometer nada além de mais do mesmo. Confirmou-se, assim, a narrativa de uma elite que desprezava aqueles que dizia querer ajudar.

ADEUS, POLÍTICA

Há uma certa justiça poética em que a derrota de Hillary Clinton marque o fim do modo de fazer as coisas que ela e Bill criaram nos anos 1990. O apelo à obscenidade tem muito a ver com a recusa da política superprofissionalizada de marqueteiros, "spin doctors", "focus groups" e "soundbites" –e Hillary era a epítome disso.

Mas foi dos Clinton também, assim como dos republicanos respeitáveis, a tática de triangulação que, movendo-se sempre à direita para disputar terreno com o discurso extremista, abriu espaço ao longo de décadas para fenômenos como o Tea Party e Trump.

Desarmar a obscenidade de direita não significa aceitá-la ou triangular com ela. Significa, primeiro, distinguir seus diferentes tipos; segundo, separar os discursos dos indivíduos que são seus portadores; e terceiro, não se ater unicamente à crítica dos discursos, mas endereçar-se a suas condições materiais de existência.

Na primeira metade da década, os ventos sopraram na direção de saídas à esquerda que não se concretizaram. Os ventos mudaram, mas os problemas seguem iguais. Que a grande crise de legitimidade do neoliberalismo tenha virado uma derrota mundial dos partidos de esquerda se explica na medida em que esses, em vez de propor uma nova realidade, mantiveram-se presos ao realismo de um tempo que desmoronava.

Enquanto as instituições em toda parte mostravam-se irracionais, foram eles que assumiram a inglória tarefa de defender sua racionalidade –apoiando medidas de austeridade sem propor reformas radicais, desqualificando a insatisfação legítima com o sistema político como "protofascismo", reduzindo a indignação com corrupção e tráfico de influência à "criminalização da política", insistindo que "a América já é grande" em meio a uma crise histórica.

O resultado está aí: o neoliberalismo sobrevive, agora em versão abertamente irracional.

A obscenidade propõe um enigma espinhoso à esquerda, na medida em que exige conciliar um compromisso inegociável com as lutas das minorias com a necessidade de acolher e compreender os medos e anseios da maioria da população. Como resolvê-lo?

Um primeiro passo seria parar de agir como se as instituições que temos pudessem ser aperfeiçoadas com pequenas medidas, sem serem integralmente transformadas. É essa falsidade cada vez mais patente que engoliu Hillary e mata o centrismo no mundo.

Mas é também a dimensão do acolhimento que precisa ser trabalhada. A identidade de esquerda parece cobrar um preço cada vez mais alto de entrada: os requisitos práticos e teóricos são cada vez mais exigentes, e seu não cumprimento pode implicar não a tentativa de persuasão, mas o fechamento de qualquer via de diálogo.

A lista de quem conta como aliado é cada vez mais restrita, enquanto o rol dos acusados de fascismo só faz crescer. É preciso entender o grão de verdade por trás da associação entre tal comportamento e o elitismo identificado pelos eleitores de Trump. Superar esse limite exige, justamente, fineza cada vez maior na hora de distinguir o que precisa ser combatido do que precisa ser desarmado.

A lição de 2016, ano em que tudo que jamais aconteceria aconteceu, é que a maneira que acreditávamos ser a certa de fazer as coisas não se aplica mais.

Deixar de se esforçar para parecer respeitável nos velhos moldes e chamar as coisas pelos nomes, não hesitar em dizer que a solução para x é y (mesmo que ela seja "inviável no Congresso") e acolher os medos e anseios das pessoas para mobilizar a partir deles poderiam ser o ponto de partida para uma obscenidade de esquerda.

RODRIGO NUNES é professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio, autor de "Organisation of the Organisationless" (Mute).


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