Folha de S. Paulo


Quando a princesa de Mônaco foi passear numa feira na Geórgia

Tbilisi, 1988

Acervo pessoal
A princesa Caroline de Mônaco e o bailarino e ator Antonio Interlandi em turnê do Ballet de Monte Carlo, em 1988

As apresentações em Leningrado haviam sido canceladas. O Muro de Berlim cairia em breve, o regime estava ameaçado, a situação, instável. A equipe de produção da turnê na cidade que logo voltaria a se chamar São Petersburgo não estava segura de poder garantir a alimentação dos bailarinos do Ballet de Monte Carlo, companhia na qual eu dançava fazia três anos.

Encerraríamos então prematuramente as apresentações em Tbilisi, capital da Geórgia, uma das repúblicas socialistas soviéticas da famosa União.

O Ballet de Monte Carlo viajava muito, por vontade de Sua Alteza Sereníssima, a princesa Caroline de Mônaco. Como patrona atuante, ela nos acompanhava com frequência nas turnês.

Havíamos iniciado a aventura soviética com apresentações em Moscou. Em seguida, dançamos em Vilnius (Lituânia), Riga (Letônia) e, por fim, Tbilisi.

A república da Geórgia ficava no sul da URSS, na fronteira com Turquia, Armênia e Azerbaijão. Era ensolarada, de economia primordialmente agrícola, uma terra rica em frutas, verduras e pessoas cultas. Ali se falava outra língua que não o russo, usava-se outro alfabeto que não o cirílico, miravam-se outras feições, outros hábitos. Prova da imensa pluralidade da União Soviética.

O Grupo Tradicional de Dança fez uma apresentação privada para nós. Havia uma espécie de orgulho na maneira como eles dançavam, quase teatral. Sem dúvida, esse lado narrativo da dança despertou meu interesse pela carreira de ator que abraçaria mais tarde.

Na fachada da Ópera da capital georgiana, um lindo pôster anunciava nossa passagem, com a ajuda de um desenho de grandes proporções reproduzindo Nijinsky no balé "O Espectro da Rosa".

De noite, o mercado negro invadia discretamente as ruas da cidade. Caviar preto, caviar vermelho, ícones ortodoxos, casacos de pele. Troquei uma calça jeans por uma chapka (típico gorro soviético) de pelo de "rat musqué" (rato almiscarado). Jeans americanos e chicletes eram o que se podia ter de mais valioso. Trocávamos gomas de mascar por potes de caviar, literalmente.

Tbilisi era a cidade da família do já falecido coreógrafo Georges Balanchine (1904-83), fundador do New York City Ballet. Mas suas coreografias até então nunca haviam sido apresentadas ali. Tivemos o privilégio de estrear algumas de suas obras na Geórgia: "Tema e Variações", "O Filho Pródigo" e "Concerto para Violino de Stravinsky". Eu adorava dançar "Concerto para Violino". O último movimento era incrível; Balanchine conseguia dar corpo àquela música maravilhosamente irregular.

O irmão mais novo do coreógrafo veio assistir à nossa estreia, sentando-se ao lado da princesa Caroline. Vestido com simplicidade, cabelos branquinhos, emocionou-se. A bem da verdade, todos nós. A Cortina de Ferro aos poucos ia se derretendo.

No dia de folga da companhia, vi o guarda-costas da princesa, Jean-Pierre, que nunca a abandonava, conversando (sem Sua Alteza) no hall do hotel. Caroline tinha ido à feira. Sozinha. Estava longe das câmeras, em uma região onde não havia paparazzi –na verdade, ninguém a conhecia por ali. Um gesto banal, quase pequeno-burguês, ir à feira durante uma viagem. Conversou com a verdureira, sabe-se lá em que língua, comprou frutas, andou. Respirou. A alegria dela era nítida.

Fui embora um dia antes dos meus camaradas para visitar um pouco mais Moscou. De lá, retornaríamos ao principado. Era quase impossível para um estrangeiro viajar sozinho de uma república a outra, mas havia conseguido um salvo-conduto graças a um amigo moscovita. No voo de Tbilisi para Moscou, os passageiros levavam a bordo galinhas (vivas), verduras e frutas, muitas frutas. Mantimentos da ensolarada Geórgia para os familiares na gelada Moscou. Isso tudo antes que o McDonald's chegasse.

Caroline voltou para Mônaco em um avião privado. Provavelmente não levou consigo as verduras que comprou.

ANTONIO INTERLANDI, 48, é cantor, ator e bailarino. Está em cartaz até 9/12 no teatro Eva Herz com "Palavras Esquecidas - O Evangelho segundo Tomé".


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