Folha de S. Paulo


Os fantasmas da escravidão, por Walter Lima Jr.

Rio das Flores, 2013

Mariza Fonseca
Portão de entrada da Fazenda Paraízo, cenário de 'Através das Sombras
Portão de entrada da Fazenda Paraízo, cenário de 'Através das Sombras'

Adaptar uma história desenrolada numa rica casa de campo na Inglaterra do século 19 ("A Volta do Parafuso", de Henry James) para o Brasil da metade do século 20 exigiu um exaustivo trabalho de pesquisa.

A ideia de filmar "Através da Sombra" nasceu da minha convivência com a atriz Virginia Cavendish durante nossas incursões teatrais. A questão mais importante era manter o clima fantástico do original. Isso nos levou a procurar fazendas de café no interior de São Paulo, antigos engenhos de cana em Pernambuco e palacetes do tempo do Império na porção fluminense do vale do Paraíba. Ou seja, empreendemos uma viagem no tempo.

Um ano e meio de busca transcorreu até chegarmos, no final de 2013, ao portão da fazenda Paraízo (assim mesmo, com z). A vasta propriedade foi a residência do visconde de Rio Preto, seu construtor. Ali, toquei a sineta ao lado do portão; algum tempo depois, surgiu um senhor à distância. Veio até nós em passos lentos, num trajeto de quase cinco minutos. Era um homem com cerca de 80 anos, negro, de fala lenta e olhar doce, submisso em todos os aspectos.

Pensei no quanto aquela região tivera uma grande população de escravos, quase 700 só naquela fazenda. Um mundo com valores culturais e morais que permanece vivo no comportamento das pessoas que o habitam.

Desse encontro veio a certeza de que o ambiente social e cultural do filme estava estabelecido. O senhor era simpático, mas de poucas palavras. Disse-me que o dono não estava em casa. A cada nova pergunta, respondia com um "sei não, sinhô". Quando voltamos em definitivo para a filmagem, em maio de 2014, ele já não estava lá. Havia se mudado para a casa de uma filha em Paraíba do Sul.

A casa-grande, modelo preciso da arquitetura do Brasil Império, é projeto de um arquiteto italiano, erguido a dois quilômetros da pequena Rio das Flores, quase na fronteira com Minas Gerais e não longe de Vassouras. Seu interior comporta 40 quartos e quatro salões; os jardins levam a assinatura do paisagista francês Glaziou, responsável por algumas das mais belas áreas verdes do Rio.

Inaugurado em 1830 com uma festa de arromba, o palacete se mantém impecavelmente conservado, como atestam papéis de parede franceses e alemães e painéis pintados por um artista italiano. Trata-se de uma atmosfera única, impossível de ser reproduzida em estúdio.

Os atuais moradores são herdeiros da família que comprou a fazenda em fins do século 19. Estão ali, portanto, há mais de cem anos e preservam com esmero a mansão.

A questão da ambientação é vital para qualquer filme, seja a história que se está contando ancorada nos dias atuais, seja uma trama de época. Em ambos os casos, um mundo vai sendo revelado por meio de objetos da cenografia, do figurino, da luz e, sobretudo, do trabalho corporal.

Como sabemos, antigamente não havia banheiro dentro das casas. Quando preciso, tinha-se de acorrer à "casinha", uma pequena construção anexa. Com o passar dos anos, a "casinha" foi incorporada e virou banheiro social.

Num casarão como o que nos serviu de cenário em "Através da Sombra", pode-se imaginar os longos corredores escuros que tínhamos de vencer para, no meio da noite, comparecer à "casinha". Ali, não havia valentia que resistisse às investidas macabras do imaginário. Toda a equipe se pelava de medo de fazer o itinerário. Eu, por exemplo, apelava para um assovio que se estendia por todo o caminho e me anunciava aos habitantes invisíveis.

Se queria uma atmosfera misteriosa para contar a minha história, certamente a havia encontrado na Fazenda Paraízo, com z.

Os trabalhos de filmagem nessa locação duraram seis semanas e meia. De meu lado, passei dois meses naquelas paragens, pois havia chegado antes de as câmeras começarem a rodar para explorar melhor a área e conhecer a luz e (sobretudo) as sombras da região.

WALTER LIMA JR., 77, cineasta, é diretor de "A Ostra e o Vento" e "Através da Sombra", atualmente em cartaz.


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